segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O Semicúpio da prima


Quando fomos viver para o Porto, meu Pai lembrou-se que tinha familiares em Braga. Um deles foi fácil de encontrar. Por ele soubemos que tinha uma irmã residente lá.
Visitamos o primo e família várias vezes, até que um dia estando minha Avó a passar uns tempos connosco, recebeu uma carta da outra prima, convidando-a para um chá. A Avó mandou um cartãozinho a agradecer e a aceitar.
Chegados a Braga, fomos procurar a rua e a casa indicadas. Ficava muito perto da Sé e as casas deviam ser quase tão velhas como esta. Batemos ao ferrolho, abriu-se a porta por meio da velha corda e, ao cimo da escada estava ela, a prima. Toda de preto, saia comprida a cair-lhe das ancas estreitas, blusa de gola alta rematada com uma rendinha, xale de merino cruzado no peito, sapatos rasos de sola de corda. A encimar isto tudo, havia um rosto muito pálido e enrugado e uma cabeleira negra, com carrapito e tudo, postiço, claro. As mãos eram compridas e aduncas como patas de águia, cruzavam-se sobre o inexistente seio. A casa, muito limpa, tinha bancos nos vãos da janela, onde verdejavam belas avencas. Poucos móveis, chão esfregado a sabão amarelo e muitas imagens e quadros de santos, juntamente com algumas fotografias antigas.
Bebeu-se o chá, comeram-se as torradinhas e os Fidalguinhos, desenterraram-se mortos e vivos. O chá deu efeito, e eu pedi para ir à casinha. Claro que a minha irmã me acompanhou. Isto é costume entre as mulheres que se está a perder e é pena. Era aí que se trocavam as grandes confidências. Nunca uma mulher ia sozinha à casa de banho a não ser em casa.
Foi-nos indicada a casinha, que por acaso era uma enorme divisão. Tinha mais plantas, o trono ficava em cima de um estrado alto com dois degraus, os outros móveis da casa de banho eram todos móveis antigos e... havia um objecto grande como um maple, feito de folha de Flandres, tapado com um lençol de linho alvo e cheio de rendas e bordados. Ficámos a olhar para aquilo espantadas e curiosas. Fizemos um monte de suposições e achamos que era melhor perguntar a quem soubesse. Tive um trabalhão para convencer a Avó de que precisava de ir à casinha, porque bebera muito chá e a viajem até ao Porto era grande. Lá foi comigo, sentou-se no trono e eu perguntei-lhe que objecto era aquele. Respondeu-me baixinho que era um semicúpio e que em casa explicava. Saímos de casa da prima, depois de grandes despedidas. Na rua a minha irmã indagou o que era aquilo. Eu disse-lhe muito séria que era um semicúpio. Ela ficou com uns olhos ainda maiores do que tinha e quis saber para que servia. Disse-lhe que só em casa saberíamos. Durante toda a viajem até ao Porto, fiz conjecturas e mais conjecturas. De repente ocorreu-me que os semis que conhecia, tinham a ver com música: semibreves, semicolcheias, semifusas e por aí. Cheguei à brilhante conclusão de que se tratava de um antigo instrumento musical. Chegados a casa, nem dei tempo à minha Avó para se sentar. “Ó Vó! Afinal que é aquilo? É um instrumento musical?”. Ela desatou a rir e disse-me: “não filha. Que ideia mais peregrina a tua. É para fazer banhos de assento.” Fiquei mais baralhada ainda. “Banhos de assento, Vó? Que é isso? Para lavar as partes de baixo não serve o bidé?”. “Não. Os banhos de assento são bons para as dores. Enche-se a bacia de água quente, senta-se a pessoa lá dentro até à cintura, com as pernas de fora, tapa-se bem com um cobertor e as dores passam. Usava-se para cólicas intestinais, renais, gazes e prisão de ventre.”
Foi a minha vez de rir. “Ó Vó e isso resultava?” “Claro que resultava. Não havia comprimidos. Os tratamentos eram feitos à base de banhos de assento, chás e clisteres”. Ora, estes últimos eram do meu conhecimento e não gostava. Fiquei a pensar que os antigos só tinham tratamentos estúpidos. Estes, mais as “bichas”, as sangrias, as teias de aranha a tapar feridas... Que horror! Como eu gostava de comprimidos, xaropes e injecções!
Hoje em dia não penso o mesmo. Estou mais aberta a tratamentos naturais. Tenho medo de antibióticos, anti-inflamatórios e outros medicamentos, que tratam de um lado e estragam do outro.
Acho que se tivesse uma casa de banho grande, mandava fazer um semicúpio como o da prima.
Até um dia destes.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

São Martinho (carta a um amigo)


Peço perdão aos outros, por dirigir esta “carta” a um de vós. Não o identifico mas ele sabe que é para ele e um pouco para todos. É uma forma de pedir desculpa pela minha ausência e ingratidão para todos os que se têm preocupado comigo. Preguiça, neura, falta de paciência e mais uns quantos problemas de saúde. Ele tem sido o mais assíduo e por tal, a ele escrevo.
Hoje quando me ligaste, disse-te que estava a fazer “rojões à minhota” para o almoço. Estavam bons, os danados. Bem regados, seguidos de castanhas assadas. Foi pena não ter água-pé da “Casa Ratas”, mas o vinhito era bom. Todos, (éramos três) gostaram.
Este era o menu da casa de meu Pai. Lembrei-me disso. Lembrei-me do velho Martinho da minha infância, que todos os sábados ia lá a casa comer uma carcaça com carne, um copo de vinho e fumar um cigarro. Eu, menina de três anos, era a encarregada de fazer a entrega do almoço ao Martinho, sempre com o mesmo discurso: “a Mãe dá o pão, o Pai o vinho e a menina o cigarrinho”. Foi aí que me tornei fumadora. No dia de São Martinho a cena era outra. O Martinho fazia anos, nascera em Alcobaça como o meu Pai e, nesse dia entrava, almoçava com o Pai. Um dia foi embora. Nunca mais se ouviu o cajado do Martinho bater na calçada, nunca mais se ouviu a sua lengalenga: “nesta rua vou entrando p`ra falar ao mê amori”, nunca mais vi a sua figura de negro, alta e esguia, de chapéu na cabeça. Hoje, os rojões e as castanhas lembraram-me o Martinho, a infância feliz. E tu ajudaste. Quem sabe, se não me obrigaste a voltar. Lá convincente és tu. E amigo. Foi por ti que hoje venci a preguiça. Um abraço grande por isso.
Os outros meus amigos que não se zanguem. Tenho lido todos, só não tenho feito comentários porque a preguiça e a ingratidão não deixam. Perdoem as luas da Maria. Vou voltar, prometo. Talvez com menos frequência, mas volto. Beijinhos para todos vós, amigos.
“Tu”, amigo de quem não digo o nome, obrigada por toda a tua amizade, preocupação e ajuda.
Até um dia destes.