terça-feira, 31 de agosto de 2010

Liberté, Égalité, Fraternité


Não sou cigana. Que eu saiba, nem sequer há ciganos na minha ascendência. Nem sequer tenho amigos ciganos. O meu filho tem um desde a escola primeira classe até hoje. Vende em feiras, vive como cigano, mas os dois estimam-se e respeitam-se.
Só lidei com ciganos de perto, há 60 e tal anos, quando por vezes, iam pedir ao meu tio para acampar dentro da Quinta. Eram ciganos muito pobres. Duas carroças desconjuntadas, dois burros, que alem de puxarem as carroças, serviam de alimento a tudo quanto era mosca, mosquito e outros insectos. À noite abrigavam-se sobre e sob a carroça, cobertos com serapilheiras, mantas, jornais. Sabiam que ali haveria sopa quente, pão e leite para as crianças. Não me recordo de alguma vez ter desaparecido alguma coisa. A roupa estendida nos varais ou estendida a corar estava lá toda. No dia seguinte partiam com a barriga cheia, mais pão e leite. Eram escuros, magros, andrajosos. As crianças nuas da cintura para baixo, de monco no nariz, eram engraçadas.
Estes eram os que os que conheci. Fernando Namora, escritor e médico, fala muito deles no seu livro “Retalhos da vida de um médico”. Aí aprendi mais coisas sobre os ciganos. Como em todas as raças e etnias, há bons e maus. Têm defeitos e qualidades. São orgulhosos, vingativos, aldrabões. Tudo coisas que acontecem em todas as raças e etnias. São diferentes? Talvez.
Vem tudo isto a propósito da vergonha que Monsieur Sarkozy está a fazer passar a França, país que sempre foi bandeira da Liberdade, mãe de todas as revoluções.
Monsieur Sarkozy nasceu em França, filho de pai húngaro, descendente de nobres e antigas famílias da Hungria e da Boémia.
Será que sua excelência se esqueceu de que os ciganos já viviam em França antes de o seu ilustre progenitor para lá ir?
Será que não leu “Nossa Senhora de Paris”? A bela Esmeralda era cigana.
Ou alguma cigana não quis fazer parte do seu harém, monsieur le président? Sabe, as ciganas geralmente são fiéis, o que nem sempre acontece com as artistas de variedades, a que o senhor está habituado.
O lema da Revolução Francesa foi traído por si. Liberté, Égalité, Fraternité. Onde, monsieur ?
Até um dia destes.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Hier encore


Tinha onze anos, tranças e vivia em Tomar onde nasci. Amava aquela terra e estava presa a ela por raízes fundas, muito fundas.
Os meus pés sabiam de cor cada pedra das ruas, os meus olhos abriam-se sempre com a visão do Castelo e dos jardins, os meus ouvidos conheciam a música do rio e das rodas, o meu nariz sentia os cheiros todos daquela terra. Longe dela estiolava, enfraquecia, ficava triste. Era o meu chão, a minha casa, o mundo que conhecia bem.
As férias, passadas entre Lisboa e o Carregal, eram apenas intervalos que serviam para renovar o amor e a saudade de Tomar.
Nesse ano saí e não voltei. Vim para Lisboa, depois para o Carregal e no fim, em vez de voltar para o meu cantinho, fui para o Porto. A vida dos funcionários públicos era assim.
Não vi o Rio, nem a serra, porque atravessar a ponte de combóio me meteu um medo horrível. Não gosto de pontes. Sempre tive medo delas, mas aquela apavorou-me. Escondi a cara no peito do meu Pai e não vi nada. Cheguei a São Bento chorosa, trémula, medrosa com aquela terra onde era preciso passar uma ponte que tremia por todo o lado, fazia ruídos estranhos e obrigava o combóio a andar devagarinho. Este primeiro contacto não ajudou nada a minha pouca vontade de morar ali.
A casa pequena, tão diferente daquelas onde morara até aí, não me agradou. Detestei a terra, detestei a casa, irritava-me a maneira de falar e certos termos usados por aquela gente estranha que não me percebia, se ria da minha forma diferente de falar. Quando começaram as aulas foi ainda pior. O Colégio nada tinha a ver com o meu velhinho Nun`Álvares. As caras que via à minha volta, não eram a Jú, a Lena, a Isabel, a Pilar, a Eduarda, minhas colegas de sempre. Murmuravam quando eu passava: “É a nova”. Diziam coisas que não percebia, tinham rostos diferentes. Primeiro revoltei-me, tornei-me bicho do mato, não falava com ninguém. A pouco e pouco as coisas melhoraram, mas ali não tive amigas.
No ano seguinte mudei para o Carolina e fui mudando. Já me dava com as colegas, já falava, já entrava nas brincadeiras. As saudades de Tomar continuavam, não gostava daquela terra. Só o rio e a Ribeira me encantavam. A pouco e pouco fui descobrindo alguma beleza na terra, sem chegar a gostar dela.
Aquele nevoeiro, aquelas ruas e casas escuras, aquelas noites que caíam muito cedo, faziam-me triste. Havia muita humidade e a minha saúde ressentia-se. A minha Mãe, sempre frágil, começou a estar doente com muita frequência. Uma das vezes, tinha 15 anos, quase a perdi. Foram 10 meses de hospital para as duas. Pouco saía do lado dela. De tudo eu culpava o Porto. Das doenças da Mãe, da minha tristeza, dos azares da vida.
Claro que me fui adaptando. Tinha amigos, paixões eternas que duravam alguns dias.
Um dia fartei-me e vim para casa dos meus tios em Cascais. Vinha doente, fraca, magra. Foi aí que tudo mudou. Conheci o meu marido, apaixonei-me, casei no Porto, onde nasceram os dois putos mais velhos. Assim que o meu marido acabou a tropa, viemos para baixo e cá fiquei.
Não pensava muito no Porto, embora tivesse algumas saudades dos amigos. Voltei lá algumas vezes e gostei do que vi.
Um domingo destes, voltei a ver “A Costureirinha da Sé”. As lembranças vieram fortes, acompanhadas de um sentimento parecido com saudade. Recordei amigos a quem não vejo há séculos, ruas onde passei muitas vezes, as casas em que morei, a minha juventude. De repente achei o Porto lindo. Vi-me como era há quarenta e muitos anos, nova, diziam que bonita. Ao ver e ouvir a Fátima Bravo, lembrei-me da avassaladora paixão do meu irmão por ela, da voz da Maria Clara a cantar aquelas canções, da voz da minha Mãe a repeti-las. Foi muito bom.
Deixei a televisão no mesmo programa, a RTP Memória claro. Veio o Júlio Izidro com o “Regresso ao Passado”. Deixei ficar. Afinal era lá que eu estava. Uma voz bonita de rapaz cantou o “Hier encore”. Não podia vir mais a propósito. Chorei, eu que nunca choro.
Um dia destes vou voltar ao Porto e vou-lhe pedir perdão de tão tarde ter descoberto que afinal o amei. Não com o amor que tenho a Tomar, Lisboa, Paris ou Florença. Mas amo-o e tenho saudades.
Um abraço amigos tripeiros que nunca mais vi. Quem sabe, um dia destes nos encontramos?