quinta-feira, 30 de julho de 2009

A influência da trovoada no gosto dos queijos


Mais uma história passada com a minha sogra e comigo.
O meu tio Alentejano, cunhado da minha sogra, trouxe um dia do seu Alentejo natal, ali para os lados da Chança, uns queijos para o meu sogro e o meu marido. Eles adoravam os queijos, nós não. Os ditos cheiravam a caserna da tropa, depois de tiradas as botas dos magalas e empestavam a casa. Acabado o almoço, comidos os queijos com exclamações de prazer deles e um imenso enjoo nosso, os senhores iam ao café e nós púnhamos os malcheirosos na varanda. Aquilo empestava a casa. Um dia, estávamos nós na sala e os queijos na varanda, cai uma carga de água e uma trovoada de estarrecer. Quando parou, uma de nós gritou: “Ai os queijos!” Corremos à varanda e eles lá estavam, ensopadas, moles, com um ar ainda pior que antes. “Que é que vamos fazer?” pergunta uma. Bem. Limpámos os queijos, pusemos um prato na borda do fogão e esperámos que acontecesse um milagre.
O milagre não veio, mas veio a hora do jantar e os dois maridos. De vez em quando, olhávamos uma para a outra, assim com ar de “como vamos nós descalçar a bota”. Chegou a hora dos queijos. Vieram para a mesa, eles começam a cortar fatias e a comer. Meio desconfiado, o pai pergunta: “os queijos sabem-te ao mesmo?” O filho responde: “ não, estão um bocado desenxabidos e moles”.
A minha sogra olhou para mim, a modos de quem pergunta: “ e agora?” Eu estava a dar de comer ao Vasco e sem me virar, disse com o ar mais displicente do mundo: “ é natural. Com a chuva e a trovoada, os queijos estragam-se”. Responde ela, com ar convencido: “ pois, também já ouvi dizer”. Eles ficaram calados e convencidos. Nós fugimos para a cozinha perdidas de riso e os queijos foram para os gatos que não se ralaram com a falta de gosto deles.
E a pata-brava sou eu?
Só anos mais tarde eles souberam a história.
Até um dia destes.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Uma tigela de ginjas


Meus sogros viviam em Cascais numa casa enorme.
Nesse tempo, muitas pessoas alugavam a casa à época a veraneantes. Eles também o faziam. Antes disso, a minha sogra limpava toda a casa, guardava num quarto fechado tudo o que não queria que servisse para os inquilinos. Vários anos a ajudei nesse trabalho, mas houve um que nunca esquecerei.
Um dia depois do almoço, mandámos homens e crianças para a praia e decidimos dar volta à enorme e alta despensa. Tira daqui, arruma dali, encontrámos um enorme frasco, onde ela fazia a ginjinha. No frasco só restavam as ginjas. Deitar fora, não deitar fora, resolvemos deitá-las numa tigela, até ver. Uma de nós lembrou-se de meter uma ginja na boca. “Prova que é bom.” Provámos, comemos e ao fim de pouco tempo, já nada restava na tigela. Continuámos as arrumações, no meio de bocejos e brincadeira. De repente, ela queixou-se de sono. Eu confessei que estava na mesma. Mais esperta, a minha sogra disse-me: “Isto é das ginjas, o melhor é sentarmo-nos um bocadinho”. Eram umas três horas. Esparralhadas no sofá, adormecemos. Acordámos com o barulho da chave na porta. Era a malta à procura do jantar. Sete da tarde e as madames a dormir. Nem arrumações, nem jantar, nada. Apenas duas belas adormecidas, que tinham apanhado uma grande carraspana. Numa explicação dada entre gargalhadas, contámos o que tinha acontecido.
Fomos fazer o jantar, ouvindo as piadinhas dos maridos e dos putos. Nós não podíamos olhar uma para a outra sem rir.
O pior é que não soubemos como ficávamos bêbedas, só dormimos.
Ai saudades, saudades. Saudades dos meus sogros. Ele fazia hoje anos. Ela morreu há oito, no mesmo dia. Daí a história.
Beijos meus, dos filhos, dos netos, dos bisnetos, queridos pais.
Até um dia destes.

sábado, 25 de julho de 2009

Saudade




À Lena

Não viveste, não viveste
E quanta vida tu tinhas
Chegaste um dia, passaste
E logo depois voltaste
Para o mundo de onde vinhas
Eras um anjo, voaste...












Com toda a ternura.

Até um dia destes

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Conta uma história Avozinha


Era todos os dias a mesma cantilena. Conta uma história. E tu contavas. Sentada aos teus pés, a cabeça nos teus joelhos, uma das tuas mãos no meu cabelo, a outra entre as minhas, ouvia vezes sem conta, as mesmas histórias de fadas e de princesas. E sonhava, minha avó, minha fazedora de sonhos. Outras vezes pedia histórias de verdade. Estas eram, tão somente, histórias de família. Do pai, dos tios, do avô e mais antigas ainda. Creio que devo ser hoje, quem melhor conhece toda a história da família. Nessas não me limitava a ouvir. Fazia perguntas. Nunca te vi aborrecida por isso. Eras como eu sou. Gostavas de lembrar o passado, de trazer de volta os mortos queridos.
Lembras-te de te zangares por eu te escrever pouco? Agora escrevo muito para ti.
Também eu conto histórias aos meus netos. E são eles que pedem: “Conta uma história avó”.
E sabes avozinha? Também conto histórias a outras pessoas e às vezes gostam.
Foste tu quem me ensinou a contá-las. Às vezes parece-me ouvir-te enquanto as escrevo.
Hoje é o dia dos teus anos. Queria dizer-te que ainda tens o teu jardim, os brincos-de-princesa, as roseiras, a erva-da-fortuna, mas não sei vó. Já não está ninguém nosso na tua casa. Nunca mais lá passei, nem vou passar. Está guardada na minha memória, junto das outras casas onde fui feliz.
Vês a carta grande que te escrevi?
Olha, hoje também faz anos que o Vasco, o único dos meus filhos que não conheceste, foi baptizado. Ele conhece-te, avó. Faz muitas perguntas como eu, quer saber tudo da família.
Vou acabar como de costume. Muitos beijinhos e saudades, da neta amiga que te pede a benção.
Até um dia destes.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Lua


Desde que há homens no mundo, até há quarenta anos, a Lua foi a Deusa inacessível, a vestal intocada, que fazia sonhar amantes, inspirava poetas e pintores, tinha um fascínio que tocava todos.
Atribuem-lhe poderes imensos, podia fazer e desfazer sonhos, manda nas marés, no nascimento das crianças. Ela, sempre diferente e sempre igual, olha-nos lá do alto, convencida da sua beleza, espargindo a sua luz suave e calma, nas horas em que o Sol ia dormir. Diziam que o Sol e a Lua eram namorados, mas nunca se encontravam.
Sob o seu luar, fizeram-se poemas, fizeram-se serenatas, houve namoros, mais ou menos secretos.
Ela acompanhou, lá do alto, o longo funeral da Linda Inês, Rainha depois de morta, de Coimbra a Alcobaça. Assistiu à última noite dos dois eternos amantes, viu as lágrimas de desespero de Pedro.
Quantos amores impossíveis tu velaste, Lua? Quantos crimes encobriste? Quantas crianças nasceram sob a tua luz?
Um dia os homens quiseram-te mais perto. Estudaram, inventaram, tentaram. E naquela noite, pela primeira vez, foste pisada, analisada, trouxeram para a terra pedaços teus. E naquela noite os homens olharam-te de forma diferente. Olhos presos em ti, nos televisores, eles viram dois homens pisar-te pela primeira vez.
E foram lá mais vezes, desistiram e agora vão voltar.
A Ciência avança, os homens hoje sabem mais do que há quarenta anos. Talvez vão descobrir alguns dos teus segredos, talvez te dispam mais do mistério que te envolve.
Mas tu vais ser sempre a Deusa inspiradora dos poetas. Tu vais continuar sempre a ser de todos e de ninguém. Eterna namorada do Sol, que nunca viste, mas te dá essa luz que tu nos mostras.
Há quarenta anos já! Eu vi os homens lá e vibrei. Continuo a vibrar se lembro o que vi. Eles vão lá, pousam, voltam com mais amostras, mais pedras. Mas conquistar-te, Lua, como se nem o Sol te conquistou?
Até um dia destes.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Príncipe Melancolia


Mais uma vez ao ver um livro com fotos de obras de Malhôa, parei a olhar um que desde garota me impressiona.
Hoje, admiro-lhe a técnica, a cor, a precisão dos pormenores. Dantes via um príncipe de conto de fadas, lindo e com uma história triste. Talvez porque a minha avó contava coisas dele. Dizia ela que não havia menina casadoira que não estivesse apaixonada pelo príncipe. Algumas traziam o retrato dele num medalhão pendurado ao pescoço. É, nesse tempo, sem artistas de cinema para amar, as meninas tinham grandes paixões platónicas pelo príncipe.
Malhôa pintou-o em criança e voltou a pintá-lo já homem. Parece que o Rei D.Carlos, não terá gostado muito do retrato, pelo ar triste do filho. Chamou-lhe “Príncipe Melancolia”.
Nasceu em Lisboa a 21 de Março de 1887, filho de D. Carlos e de D. Amélia, era o herdeiro do trono, já um tudo nada periclitante, de Portugal. Teve uma educação esmerada, sendo seu preceptor Mouzinho de Albuquerque. Fez uma viagem às então colónias portuguesas de África, onde, ao que se diz, terá sido recebido com grande entusiasmo. Além de belo e culto, era simpático e aberto.
Voltou para Portugal e pouco tempo depois, deu-se a tragédia do Terreiro do Paço. A 1 de Fevereiro de 1908, aos vinte e um anos incompletos, o príncipe foi assassinado juntamente com o pai. Ainda matou um dos assassinos, mas também ele caiu varado pelas balas. Assim tristemente, acabou a história do Príncipe Melancolia.
Será que essa melancolia já era pronuncio do fim tão prematuro? Só ele o saberia.
O quadro encontra-se nas Caldas da Rainha, no Museu José Malhôa, num recanto mal iluminado.
Mal recebido pelo rei, retrato fiel do pobre príncipe, o quadro parece ter a mesma sorte: esquecimento. O mesmo esquecimento que o retratado. Um, morto, esquecido até nos manuais de História. O outro, relegado para um canto, como se fora obra menor do autor.
Eu vou continuar a ir vê-lo sempre que voltar às Caldas. Porque desde que o vi a primeira vez, todos os príncipes de todas as histórias da minha avó, tinham para mim, o rosto e a figura do “Príncipe Melancolia”, D. Luís Filipe.
Se algum de vós tiver visto o “Equador”, ele é representado e bem, pelo Pedro Granger. Só lhe faltou o ar melancólico dele.
Até um dia destes.

sábado, 11 de julho de 2009

Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é Fado


Comecei a tarde triste. O espectáculo que vi, foi triste. Uma moça pouco mais nova do que os meus filhos, que vestiu à nascença roupas deles, que dormiu no berço que fora deles, mais uma vez, drogada ou bêbeda, insultou toda a gente, mesmo quem já tentou ajudá-la. As pessoas riam, eu quase chorei. Lembrei-a pequenina, doce, bonita, estendendo os bracitos para mim. Esses mesmo braços que hoje são um mapa de cicatrizes, de nódoas negras.
Tem um filho, ela. Descobrimos que estava grávida por acaso, eu e outra vizinha. Quem é o pai? Nem ela sabe. O filho foi entregue a um irmão dela. E ela continua a jogar às escondidas com a morte todos os dias. Entretanto faz rir alguns, faz-me sofrer a mim.
Saí da varanda, tentei esquecer, queria ir aos fados feliz.
Foi muito bom. Como eu gosto de Fado ao vivo! Joaquim Campos, Nuno de Aguiar, uma Senhora já entradota, com uma voz linda, um naipe de jovensinhos muito prometedores, belíssimo acompanhamento, fados antigos, boa companhia, foi muito bom.
Saímos e o pesadelo voltou. A caminho do carro, num local bastante frequentado, perto de uma esquadra de polícia, outro jovem tentava desesperadamente, arrombar um parquímetro.
Droga de droga. Eu vinha feliz, muito feliz. A noite tinha sido perfeita. Caldo verde, bacalhau, sangria, arroz doce, fado, boa companhia. Ver o meu puto Vasco, tratado com respeito, com amizade pelos colegas, ouvir dizer bem dele. Que mais quer uma mãe? Estava feliz, orgulhosa da minha cria, contente de ouvir o Fado.
Porquê tiveste que aparecer puto loiro de caracóis? Porque estavas a arrombar o parquímetro? Porque te drogas? Porque existe droga? Porque não acabam com os, passadores de droga?
Porque é que tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é Fado?
Até um dia destes.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Alda Hermínia, a Boneca mais que centenária


Gosto de bonecas. Muito. Tive algumas humildes de cartão, de celulóide, quando era pequena. De todas guardo lembranças boas e tristes. Boas, quando eram novas, com grandes olhos pintados, boca em forma de coração, muito vermelha, cabeças com altos a fingir ondas, também pintados de amarelo e castanho. Aos poucos o verniz estalava, as cores iam desaparecendo, os braços e as pernas presos com elásticos caíam e a pobre boneca transformava-se em mísero trambolho, a quem eu tratava desveladamente, porque estava doente. As duas de celulóide que tive, também acabaram mal. Com tanto banho, tanto carinho, acabavam com altos e baixos, fendas, olhos metidos nas órbitas. Resumindo: tinham um curto prazo de validade.
Um dia a minha avó deu-me uma boneca linda. Cabeça de biscuit alemão, olhos azuis, corpo de pelica. Não tinha cabelo, mas tinha ainda algumas peças de roupa originais.
O problema do cabelo foi resolvido facilmente. Eu tinha muito. É pois o meu cabelo que ela ainda tem. Roupas, a minha mãe com restos de tecidos sem idade e muita arte vestiu-a. Claro que não tinha ordem de lhe mexer senão em dias de festa. Mas era minha e eu podia olhá-la, mostrá-la às minhas colegas. Dei-lhe o nome da minha avó. O tempo passou, os velhos tecidos romperam-se e fui eu que a voltei a vestir. Nova busca nos restos de tecidos. Dias e dias a tentar reproduzir o vestido de noiva da minha outra avó, que ainda guardo. O cabelo ainda é o meu cabelo de menina. Está numa vitrine, juntamente com outros tesouros. Já me ofereceram bom dinheiro por ela. Só que ela já não é minha. É da minha neta, eu sou apenas Fiel depositária dela. Mesmo que ainda fosse minha nunca me desfaria dela.
Minha avó faria no dia 22 deste mês 132 anos. A boneca foi-lhe dada no dia em que fez um ano.
Acham possível desfazer-me desta relíquia? Eu não seria capaz.
Isto de limpar o pó, dá-me cada ideia!
Até um dia destes.

domingo, 5 de julho de 2009

Irmãs


No dia em que fiz dois anos, estávamos no Carregal, perto de Ovar.
À hora do jantar, um grande reboliço pôs tudo em polvorosa. Estava tudo de volta da mãe, que agarrava a grande barriga com as mãos e gemia. Desatei a berrar. Queria o colo dela, queria a minha mãe.
Levaram-me dali, adormeceram-me e já não dei pela saída da mãe para o Porto.
De manhã as tias explicaram-me que a mãe e o pai tinham ido buscar o bebé novo. Aí fiquei contente. Eu já tinha um irmão mais velho, que era o meu protector, tinha tido uma irmãzinha que não conhecera e pela qual a mãe chorava ainda. Um bebé, era tudo o que eu queria. Só que o bebé, levou quatro dias a chegar. Eu já estava em pulgas. Então nem bebé, nem mãe, nem pai? Mas onde é que tinham ido buscar o bebé?
Um dia vestiram-me a preceito, meteram-me no carro do tio Zé e levaram-me a uma casa enorme, com umas senhoras vestidas de branco, véus na cabeça, terços à cintura. Andamos por um corredor grande, abriram a porta e lá dentro estava a mãe sem barriga, o pai com ar embevecido e uma trouxa de roupa cor de rosa, só com a carinha de fora, isto é: o nariz arrebitado, o polegar na boca e os olhos fechados. Olhei para a mãe com ar interrogador e ela disse: é o teu bebé e é uma menina. Já mais ninguém teve licença de te tocar. O bebé era meu. Só eu tinha direito de te tentar tirar o dedo que teimosamente, metias de novo na boquita.
Fomos crescendo. Sempre juntas, sempre cúmplices, sempre à bulha, sempre irmãs. Até eu casar, dormíamos no mesmo quarto. Chorámos e rimos, discutimos e encobrimo-nos. Num minuto odiávamo-nos, noutro morríamos a rir por qualquer coisa.
Separámo-nos. Cada uma teve e tem a sua vida. Tu estás aí, nas ilhas de bruma, eu aqui, neste país de lodo.
Todos os dias me lembro de ti. Como és agora, como fomos dantes.
A vida mudou e mudou-nos. Mas há coisas que permanecem iguais. A amizade, a ternura, a saudade e a lembrança daquele dia doze de Dezembro. Ainda oiço a voz da mãe: “Olha filha, é o teu bebé”.
Sabes que não sou de grandes manifestações de ternura, ao contrário de ti. Hoje abro uma excepção. Um abraço daqueles sufocantes e uma data de beijos como gostas.
Até um dia destes.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Casa de Bonecas


Talvez devesse começar por dizer, “Era uma vez”, porque esta história foi passada com uma criança e mais parece um conto de crianças. Só que é verdadeira e foi passada comigo. Ou melhor, com a Maria menina de cinco anos, com a cabeça cheia de sonhos e uma loucura por brinquedos, que geralmente não podia ter.
Minha mãe viveu alguns anos em Águeda. Tinha lá amigas, daquelas amigas que vêem da infância e duram uma vida inteira.
Uma delas casou rica. Um dia, estávamos em Ovar a passar férias e minha mãe recebeu um convite dessa amiga, para ir passar o dia com ela a Águeda. Fomos. A senhora vivia num grande palacete, perto do centro da então vila.
Não me perguntem como era a casa. Tinha um jardim, uma cave e dois andares. Só me lembro da cave. Tinha três divisões: um bar, uma sala de jogos e um quarto de brinquedos. Havia duas meninas amorosas, que logo me levaram para o dito quarto. Eu parei à porta, muda, trémula, de olhos arregalados. Aquilo era uma loja de brinquedos preciosos. Havia bonecas lindas, de todas as nacionalidades, camas, armários cheios de roupinhas, pequenos pratos com comidas a fingir, sei lá. Eu nunca tinha visto nada assim.
A menina mais velha agarrou numa boneca com trancinhas, pôs-ma nos braços, dizendo: podes mexer em tudo. Olha esta tão parecida contigo! Até tem trancinhas como tu!
Mas eu já não via nada. Ao fundo do quarto, em cima de uma mesa, estava uma casinha pequenina, linda, com janelas, portas, plantas.
A menina viu o meu olhar e apressou-se a abrir a parte da frente da casinha. Tinha tudo. Móveis lindos, carpetes, cortinas, loiças, livros, bonequinhas vestidas de formas diferentes. Fiquei maravilhada e não larguei a casa em todo o dia. Limpei-a, arrumei-a, mudei a roupa das bonecas. Quando chegou a hora de partir, levei nos olhos aquele brinquedo que nunca poderia possuir. Chorei baixinho todo o caminho de Águeda a Ovar. Nunca esqueci a casinha. Era o meu sonho secreto e impossível.
Quando a minha filha fez cinco anos, o pai fez-lhe uma casinha com todos os moveis. Tudo feito por ele. Ela ainda hoje a tem.
Para mim foi o prémio de consolação.
Aqui há poucos anos, era a minha neta pequenina, apareceram uns fascículos de um livro, chamado “Casas de Bonecas”. Cada fascículo vinha acompanhado de uma peça da casa, ou um pequeno móvel. Logo sonhei dar uma à minha neta. Quando fui comprar o primeiro fascículo, o sonho de outrora falou mais alto. A Maria menina entrou na minha cabeça e disse: “Compra dois!” Quase sem pensar, comprei mesmo. E fui juntando semana a semana, paredes, portas, chão, estrutura, móveis, loiças. Quando acabou, o meu marido construiu-as. Ficaram lindas. Quando acabei de lhes pôr os móveis, as carpetes, as cortinas e as loiças, o meu coração batia como o da Maria menina de cinco anos. As lágrimas caiam-me dos olhos de novo, mas desta vez de alegria. Era o meu sonho realizado. Esta era minha. Não teria que a deixar.
Hoje ao limpá-la, tudo isto me passou na cabeça.
E sabem a melhor? A minha casa das bonecas não é um simples objecto de adorno. De vez em quando brinco com ela. Mudo os móveis de sítio, falo com as Donas Bonecas, invento histórias de vida para elas. Louca? Sou sim. Mas alguém ainda tinha dúvidas?
Se todos os sonhos fossem tão simples!
Até um dia destes.