sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Agora são mesmo livros




No post anterior, acabei por não falar de livros. Falei apenas de um que me marcou e de tudo o que ele provocou em mim.
Hoje vou falar mesmo de livros. Do que foram, são e me ensinam.
Se me pedissem para definir o que sinto por eles, a resposta rápida e sincera, seria: “os livros são os meus companheiros mais antigos, mais fiéis, aqueles que me dão tudo, sem nada me pedir”.
Nasci a ver livros. Os meus pais tinham-nos e ambos adoravam ler.
O escritório do meu pai tinha as paredes forradas de livros. Livros de toda a espécie. Tinha até, uma estante fechada onde moravam os menos próprios para meninas e senhoras, daquele tempo. Penso que já contei, como aprendi, com muito engenho e arte, a abrir essa estante misteriosa, e li, muito antes do que o meu pai julgava, todos os livros do Eça, do Abel Botelho, “A Corja” e o “Eusébio Macário” do Camilo, os livros de Zola e Balzac, alguns de Aquilino, Morávia. Sei lá!... foram tantos!
Ainda não sabia ler, quando “li” as colecções de revistas, belamente encadernadas, “Serões da Província”, “Ilustração Portuguesa”. Olhava os bonecos, inventava histórias. Quando o meu pai lia o jornal, punha-me ao lado dele e, tentava ler as “gordas”. Assim aprendi a ler.
Os primeiros foram as histórias da Condessa de Ségur. Depois, um livro a sério: “Os Fidalgos da Casa Mourisca” e todo o Júlio Dinis. Não li, devorei. Então o meu pai deu-me para ler o meu primeiro Camilo: “O Bem e o Mal”. Ainda hoje o sei quase de cor. Vieram depois, Alberto Pimentel, Arnaldo Gama, portugueses, franceses, alguns ingleses e... Hemingway, Remarque, Rilke. E russos: Tolstoi, Dostoievski, Tchekov. E os brasileiros, com Amaro, Machado de Assis, Veríssimo, à cabeça. E livros sobre a guerra. E romances históricos. Um dia, já o disse, o meu irmão deu-me “Novos Contos da Montanha” de Miguel Torga e passei a devorar os livros todos dele. Leio-os vezes sem conta e, encontro sempre algo novo. Ajudaram-me, ajudam-me a aprender as pessoas e as coisas. Encontro em Miguel Torga resposta às muitas perguntas que a minha cabeça confusa, me faz. Entrou-me na alma e no sangue, ao ponto de quando morreu, eu ter sentido um desgosto enorme.
É assim: leio e aproveito tudo o que leio, mas alguns livros absorvo-os, fico tão marcada que por vezes, acho que os vivi.
Difícil de entender? Talvez. A paixão é tão grande que não me limito a lê-los, tenho de os ter. Emprestar livros? Só a alguém em quem tenha muita confiança. E mesmo assim, quando voltam para mim, releio-os avidamente, folha a folha, letra a letra, como se tivesse medo de me terem roubado uma letrinha só. Os meus livros são meus, só meus. Eu que gosto de partilhar tudo, não gosto de partilhar os “meus livros”. Gosto sim, de os dar, a quem eu sei que os ama como eu e são a melhor prenda que recebo.
Dos livros do meu pai, nada sei. Nunca mais os vi. Onde terão acabado “O Bem e o Mal”, o resto dos Camilos, Eça, Zola?
Eu tenho muitos já, mas tenho pena de não voltar a ver, aqueles que li pela primeira vez.
Vou acabar. É que tenho um Lobo Antunes, um João Aguiar, um Mia Couto, um Nuno Júdice e “A Pianista” do Nobel da literatura, Elfriede Jelinek, em lista de espera. E a próxima vez que passe por uma livraria, de certeza que vai lá estar algum à minha espera. Desde que não seja da minha odiada M.R.P. vem para casa.
Até um dia destes.


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Livros


Neste espaço tenho falado de amigos perdidos, amigos antigos, amigos de agora. Tenho falado das coisas que gosto, das que não gosto, da minha Tomar e outros locais e poucas vezes de livros.
Reparei nisso há poucos dias, por causa dos últimos que li.
Chorei, ri, aprendi, com a “Catedral”. Aprendi mais um pouco sobre a segunda guerra mundial e os sentimentos humanos, com um pequeno livro chamado “Os Jardins da Memória seguido de Amar Simplesmente” de Michel Quint. Para desanuviar, fui buscar um livro de Rosa Lobato de Faria, “Os três casamentos de Camilla S.”.
Li-o com agrado. É daqueles livros que não dão muito que pensar, mas distraem. Como tenho andado mais ou menos em baixo, resolvi pegar noutro livro da Rosinha. Achei o nome um pouco piroso e confesso que não esperava muito dele. Enganei-me. O nome do livro é “Romance de Cordélia”. Pensei de imediato em romances cor de rosa, daqueles em que no fim, os bons têm recompensa e os maus o merecido castigo. Enganei-me, repito.
A história é tudo, menos cor de rosa ou pirosa. Os maus não são castigados e a boa passa as passinhas do Algarve. Está tudo do avesso. A heroína, depois de ter sofrido mais do que será suposto alguém aguentar, acaba na rua, sem abrigo, sem mais amparo do que outro sem abrigo. Fiquei dorida, marcada, com a consciência pesada, a perguntar-me se quando vejo um sem abrigo, o simples facto de ter pena e revolta, serve para alguma coisa. Até aqui, eu via os sem abrigo e naquele momento, sentia que “aquilo” não estava certo. Quando, nas noites de chuva, deitada quente e confortável na minha cama, com um teto a abrigar-me, o meu companheiro, o meu cão, as fotografias dos meus mortos queridos, frente aos olhos, pensava neles, nos que lá fora tinham por cama um cartão, por abrigo trapos e plásticos, por companhia a chuva, o vento, o frio e a trovoada, sentia uma fisgada de dor no peito e na consciência. Depois, egoístamente, adormecia.
A partir deste livro, a chaga ficou aberta. Só agora eu percebi, que por trás de cada sem abrigo há uma história, há um passado. A partir daqui, cada vez que vir um “sem abrigo”, terei que saber porquê. Arriscarei ouvir insultos, acusações, mas tentarei saber porquê eles estão ali. Sei que não poderei fazer nada. Mas aprendi que alguns deles precisam do calor de uma palavra, de um momento da nossa vida, para não se sentirem tão marginalizados.
Há anos uma pobre mulher, meio louca, abrigou-se debaixo dos arcos do meu prédio. As pessoas não gostavam, era horrível, vergonhoso. Conseguiram correr com ela. Foi abrigar-se numas grutas da Calçada de Carriche. Morreu atropelada. Enquanto aqui esteve dei-lhe de comer, algumas roupas velhas. Mas nunca me lembrei de lhe perguntar quem era, donde vinha, como chegara aquela triste situação. Só agora senti remorsos. Porque a velha Palmira, talvez tivesse uma história como a da Cordélia. Talvez precisasse de um pouco de atenção mais do que daquilo que eu lhe dava em silêncio.Eu sei que me estou a arriscar a que me acusem de estar a fazer demagogia barata. É verdade. Porque eu sou ainda pior do que os que os ignoram. Eu tenho a consciência do meu egoísmo e da minha impotência.
Desculpem o desabafo. Não quero dar lições a ninguém. A culpa foi do livro da Rosinha, que não me sai da cabeça.
Vou ficar por aqui, pois já escrevi disparates demais para um só dia.
Até um dia destes.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Carta para Margarida




Foram muitas as cartas que trocámos. Nelas contávamos tudo o que fazíamos, sonhávamos e pensávamos. Nelas falávamos de amores e desamores, de ilusões e desilusões, combinávamos loucas fugas para Paris e sonhos de uma vida diferente da que tínhamos. Havia sempre um P.S. nessas cartas: Rasga e queima.
Tínhamos medo da censura da minha mãe e da avó. Isto hoje fará rir. Que segredos escabrosos teriam duas raparigas para contar uma à outra? Para a actualidade nada demais. Eram cartas sinceras, quase ingénuas. Mas para aquele tempo, eram ousadas. Falávamos de coisas que a avó, a minha mãe, ou a tia, nem sonhavam que nós sabíamos, sentíamos, ou desejávamos.
Na última vez que estivemos juntas não falámos. De mãos dadas, olhos nos olhos, dois cigarros, tivemos a mais íntima conversa das nossas vidas. Lembrámos sonhos partilhados, dores só de nós sabidas, alegrias vividas em conjunto. No fim, abraçámo-nos longamente, silenciosas, com duas lágrimas que se misturaram nas nossas faces unidas. Não foi adeus. Foi até sempre, até ao último dia da minha vida. Faz hoje anos. Faz também anos que a avó partiu.
Tenho saudades das duas. Saudades das nossas conversas sem fim. Saudades das histórias do passado da avó.
Beijos para as duas e a certeza de que enquanto eu viver, alguém neste dia vos lembrará com muito amor.
P.S. Não rasgues, nem queimes. Já não é preciso.
Até um dia destes.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Carnaval


A minha relação com o Carnaval foi sempre distante. Fui espectadora, mais ou menos indiferente, nunca participante. Em Tomar, das janelas da casa onde nasci, via os grandes bailes da Nabantina. Achava graça às meninas vestidas de minhotas, de damas antigas, de criadinhas fardadas de vestido preto com gola,
avental e crista brancos, aos rapazes vestidos de polícia, de bombeiros ou magalas. Tocavam valsas, tangos, a raspa. O moço dirigia-se à moça, tocava-lhe no pé, mais ou menos delicadamente e indagava: “A menina dança, ou já tem par?”. A menina olhava de lado a mamã e, conforme o ar desta, aceitava ou não. Entretinha-me a vê-los e a atirar papelinhos e serpentinas, da janela. Aqui cabe dizer, que nunca soube atirar uma serpentina. Enquanto os outros faziam malabarismos incríveis, eu deixava-a correr direitinha à rua.
Dos cortejos de Carnaval em Ovar, já nesse tempo afamados, eu continuava a ser espectadora de janela. Achava os carros bonitos, ria-me com um ou outro conhecido, vestido de forma bizarra, mas nunca senti vontade de lá estar no meio.
No Porto, o Carnaval resumia-se a uma ida ao circo ao Coliseu, onde mais uma vez, eu estava num camarote e a festa era lá em baixo na arena e na plateia.
Virá daí esta relação distante com o Carnaval? Ou será o medo que tenho de disfarces de qualquer espécie, caras tapadas ou camufladas? Ou o pavor de me ver no meio de muita gente?
Hoje vou ficar em casa. Verei os diferentes cortejos na televisão, vou ler e tentar não pensar no verdadeiro Carnaval em que se transformou o mundo.
Quem gostar dele, divirta-se. Os outros façam como eu: ignorem-no.
Até um dia destes.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

As Meninas do Convento, o Orador e o penico Oriental


Ao Padre José Guilherme.

Hoje vem uma história que li numa velha revista de 1981 e, que infelizmente durou só três números. Chamou-se “Tomar Cultura”.
Dos três números só tenho um, mas que me vai dar inspiração, para uns dias. Aproveito para agradecer ao Alfredo Caiano Silvestre, seu coordenador, que me deu carta branca para o fazer.
A história foi contada, no original, pelo Padre José Guilherme, infelizmente já desaparecido. Vou resumi-la, pois é demasiado extensa.
Ora, deu-se o caso, numa qualquer aldeia, há muitos anos. O bom povo da terra tinha conseguido juntar dinheiro, para comprar um belo relógio para o campanário da sua Igreja. Prepararam-se as festas, enfeitaram-se as ruas, tudo estava um brinquinho. Precisavam de um Orador abalizado. Convite feito e aceite, era preciso alojar convenientemente, a ilustre figura. A única casa condigna era a Quinta do Convento, pertença de duas manas, muito religiosas, a quem chamavam “Senhoras Meninas Condessas.” Como isto me fez lembrar “As Meninas da Fonte da Bica” e Ramada Curto!
Preparado o melhor quarto, feitas as iguarias, esperou-se a chegada do visitante. Ele chegou no carro do merceeiro da terra, acompanhado do Prior. Depois dos cumprimentos da praxe, entraram no convento, onde as senhoras os esperavam. O jantar foi longo, bem regado. Eram horas de dormir. Foi o Orador conduzido ao seu quarto e preparou-se, depois das orações, para o merecido sono. Deitou-se e, quando estava quase a entrar no país dos sonhos, sentiu uma cólica intestinal que aumentava, de segundo em segundo. Não lhe tinham indicado a casa de banho daquele andar. A do andar debaixo era demasiado longe, para aquele tremendo aperto. Abriu a porta da mesa de cabeceira e deparou-se-lhe um belo penico Oriental, com tampa e tudo, relíquia de família, ali posto em sua honra. Em desespero, aliviou as santas tripas, tentou ajeitar-se melhor e... o penico partiu-se. Aos gritos aflitos do ilustre visitante acudiram as meninas. O resto da noite foi passado a lavar e tirar os cacos, do ferido e conspurcado o rabo, que ao fim de pouco tempo estava como novo. Mas o penico, o belo penico Oriental, relíquia daquela casa, acabou na lixeira, escaqueirado e sujo.
Padre Zé Guilherme, desculpe o atrevimento, lá onde está.
Alfredo, espero que não se arrependa de me ter dado autorização para contar a história à minha maneira.
Até um dia destes.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Aniversário



Antes de mais nada, Parabéns meu amor.
Depois, obrigada aos teus pais, por te terem dado vida e te terem ajudado a ser quem és.
Obrigada pelos momentos felizes que vivemos e pelo amparo que me deste nos dias maus. Obrigada por teres paciência para me aturares há tantos anos, eu sei que nem sempre tenho um feitio fácil. Obrigada pelos nossos três filhos. Obrigada por seres o pai que és. Obrigada pelos anos difíceis, mas tão felizes, que vivemos. Obrigada por todo o amor, companhia e compreensão, ao longo destes anos. Obrigada por termos “crescido” juntos. Obrigada por me teres escolhido. Obrigada pelo que pensas de mim, embora eu não tenha nem metade das qualidades que me atribuis.
Não vou dizer mais nada. Junto uma coisinha que já conheces. Um pequeno poema que nada vale, mas que diz bem, o que sinto por ti

Era Junho e chovia.
Lembras-te amor?
Passaram anos,
Sofremos desenganos,
Mas eu nunca esqueci aquele dia.

Era Cascais com a baía ao fundo.
Lembras-te amor?
Passaram anos,
Passamos desenganos,
Mas nesse dia começou o mundo.

Maria

É, ao fim deste tempo, aquilo que ainda sinto.
Um beijo e todo o amor da tua Maria.

Até um dia destes. Ah! E não se esqueçam que: “Todas as cartas de amor são ridículas. Se não fossem ridículas, não eram cartas de amor.”

sábado, 14 de fevereiro de 2009

A minha Princesa


Há 13 anos, recebi um telefonema às 6 horas da manhã. A minha Princesa ia nascer. Já tinha a mala feita há dias. Metemo-nos no carro e rumámos a Castelo Branco. Eu, que detesto velocidades, nesse dia levei o tempo todo da viagem, a refilar porque o carro não andava, porque as estradas eram uma miséria, porque o avô não carregava no acelerador. Chegámos ao Hospital cerca das 9-30.
Encontrei-as já no quarto. A mãe, embora cansada, estava linda como nunca. Ela, era uma coisa pequenina, linda de morrer. Fiquei sem saber quem devia acarinhar primeiro: a filha ou a neta? Resolvi o problema abraçando as duas ao mesmo tempo. Senti a mesma ternura, a mesma emoção, que já tinha sentido por três vezes. Carne, sangue, amor, necessidade de as proteger de todos os males do mundo. Eu, era avó. Aquele pedacinho de gente era minha neta, a mãe era a minha filha, que anos antes, eu tinha apertado contra mim, com o mesmo amor e o mesmo sentido de ser responsável, por mais um ser humano. Não foi amor à primeira vista, porque eu já a amava na barriga da mãe.
Hoje faz 13 anos. Está mais alta do que eu, é muito bonita. Inteligente, mas distraída; vaidosa como a avó.
Está longe e não a vejo tantas vezes como queria.
Quando está comigo, gosto de a ver dormir. Volta a ser o bebé de há 13 anos. Acordada, maior que eu, é uma adolescente que sabe o que quer. Adormecida, volta a ser o meu bebé, que precisa de toda a protecção. E não será que filhos e netos, precisam sempre da nossa protecção? Eu acho que sim.
Parabéns minha Princesa. Que tenhas um dia feliz. A avó, cá de longe, vai pensar todo o dia em ti.
Beijinhos meus e do avô.
Até um dia destes.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Apúlia e os Sargaceiros


O norte tem belas praias. Entre a Foz do Douro e Caminha são muitas e algumas muito belas. Têm grandes areais, sol, mas as águas são frias. Daí, a fuga para as praias do Alentejo e Algarve.
Nunca gostei de ir à praia, mas há algumas que me encantam no Norte: Póvoa do Varzim, Ofir, Moledo, Vila Praia de Ancora. Não é, no entanto de nenhuma delas que vou falar. Nem de Verão. Nem de férias. Vou falar de trabalho, um trabalho duro, perigoso, mas que me prendeu a vista e a admiração, por um povo diferente, que vivendo do mar não é pescador, correndo riscos, gelando dentro de água, de Inverno ou de Verão, para retirar do mar o sargaço que lhes irá adubar a terra e torná-la fértil e rica. A Apúlia, que tem um património arqueológico notável, nunca foi terra de pescadores. É terra de lavradores e apanhadores de algas, os Sargaceiros. São homens admiráveis. Vestidos de forma tradicional, o seu traje consiste num longo casaco de abas, que o cobre até meio das coxas, sendo apertado na cintura por um cinturão negro de cabedal. É feito de pura lã de cor natural, tem mangas justas, punhos altos bordados tal como a gola, com carreiras de pespontos. É todo cosido à mão e tem o nome de branqueta.
O chapéu, feito do mesmo material, tem dois bicos, um para trás, outro para a frente. Chama-se Sueste. Assim equipados, com o Galhapão, espécie de camaroeiro gigante, entram dentro de água, mergulham a rede no mar, para a retirarem cheia de sargaço, a alga que irá adubar a terra. Geralmente, aí têm a ajuda das mulheres que os auxiliam a puxar o galhapão. Estas, vestem saia do mesmo material da branqueta, blusa branca e corpete bordado. Mais frágeis, não entram no mar.
É bela a Apúlia. Tem prados verdes, campos de cultivo de cereais, batata, legumes.
A bem da verdade, esta era a Apúlia de há quarenta e tal anos, quando a conheci. Ao que sei, ainda há sargaceiros, mas vestem de
oleado e provavelmente tirarão o sargaço de outra forma.
Mas a Maria, que devia chamar-se Saudade, continua a vê-los assim.
Adeus Apúlia, terra bonita da minha juventude. Adeus sargaceiros, meus heróis de um dia. Talvez um dia volte, não sei. Tudo deve estar diferente. Não quero saber. Desejo todo o progresso possível para a terra e os homens do sargaço, mas deixem-me com as minhas lembranças.
Até um dia destes.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Varina da Madragoa


Conheci a Madragoa há largos anos. Encantou-me aquele labirinto de ruas, travessas, vielas, velhos e enormes conventos e palácios, a que se encostavam casas pequeninas e humildes. Encantou-me o vaivém das pessoas que passavam, trocando cumprimentos, até com quem não conheciam. E as varinas, de saias rodadas, aventais, chinelas, lenços a descair numa graça que parecia estudada. E os nomes das ruas (das Madres, das Isabéis, das Inglesinhas, das Trinas. E os gatos, a roupa a secar, as conversas de janela para janela. O cheiro do Tejo, ali tão perto. Achei-lhe um ar de Aldeia bonitinha.
Sei pouco da Madragoa. Sei que o nome lhe vem das “Madres de Goa”, (daí, Rua das Madres); sei que a “Travessa das Isabéis” assim se chama devido a um Convento fundado por Santa Isabel da Hungria, sendo as freiras chamadas de “Isabéis”. Para saberem mais sobre o bairro, consultem os olissipografos: Pastor de Macedo, Matos Sequeira, Norberto de Araújo, Leitão de Barros, Marina Tavares Dias, Appio SottoMayor, etc. Eu só sei falar da minha Madragoa. Está diferente. Ruas desertas, sujas, com mais cheiro de xixi de gato, do que gatos, sem o barulho das chinelas e dos pregões das varinas, mas ainda bonita, ainda com pessoas que passam e dizem: “Boa tarde”, ainda com o Tejo ali ao pé. Ah! E a “Varina da Madragoa”, igual ao que sempre conheci. Restaurante de bairro, não muito grande, sem grandes letreiros. Não precisa. Quem lá vai, sabe onde é. Do tamanho que eu gosto: nem grande nem pequeno, forrado a azulejos (azuis, à moda antiga), nas paredes há recortes de jornais, que falam dela, poemas, lembranças da antigos e actuais clientes da casa.
Por lá passaram escritores, jornalistas, aspirantes a ambas as coisas. Não tem luxos de mobiliário ou de comida, mas é tudo honesto, limpo, saboroso. Não tem um batalhão de empregados a atender, tem um senhor simpático, amável, sem subserviência. Apetece ficar a conversar depois de concluída a refeição, pois ninguém nos olha, como que a perguntar, porque é que ainda lá estamos. É bom olhar os artigos dos jornais e pensar que estamos no mesmo sítio em que quem os escreveu esteve e onde alguns ainda voltarão.
Como vêm ainda há uma “Varina na Madragoa”. Vão lá e vejam.
O peixe é bom, os diversos bacalhaus são óptimos, a açorda de gambas, posso garanti-la, porque foi o que comi, desta vez.
Parece que fecha aos Sábados ao almoço e às segundas.
Até um dia destes.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

SALVADOR

Deram-te um nome predestinado
Destinado
A uma vida de Poeta ou Santo.
E no entanto,
Tu foste o Cavaleiro, que por sorte,
Tentou vencer a morte.
Ela venceu-te, dura, traiçoeira,
Da maneira
Que vence tarde ou cedo todos nós.

Mas não foste nunca, em nada, um vencido.
Convencido
Que a tinhas enganado ainda viveste
E escreveste
O livro que deixaste a todos nós,
Contando em viva voz
Como se vive com ela à cabeceira.
E foi deste maneira
Que nos deixaste o eco do teu nome.

Não conheci Salvador Vaz da Silva pessoalmente. Mas segui a luta titânica que travou com a morte.
São para ele, estes pobres versos. Ele merecia uma Epopeia.
Que ele nos sirva de exemplo a todos.Até um dia destes.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Irmão


Quando nasci, já te encontrei à minha espera. Penso que foi amor à primeira vista. Por mim, para me pegares ao colo, comeste favas que nesse tempo detestavas. Crescemos lado a lado, ramos da mesma árvore. Houve sempre entre nós uma grande cumplicidade, um grande sentido de protecção da tua parte, uma grande admiração e orgulho da minha. Eu era irmã de um dos mais inteligentes, mais respeitados, mais bonitos rapazes de Tomar.
Ficava vaidosa quando me perguntavam se eu era tua irmã.
Contigo, fui a primeira vez ao cinema e vi filmes de cow-boys. Contigo, lia “O Cavaleiro Andante” e “O Mosquito”. Foi das tuas mãos que me vieram os primeiros livros da Condessa de Ségur”.
Primeiro “O Evangelho de uma Avó”, de seguida “Um Bom Diabrete”, “O Brás”. Mais tarde, Torga, o nosso Torga e “Novos Contos da Montanha”. Quando comecei a ler francês, deste-me num Natal “Terre des Hommes”, o meu primeiro Saint-Exupéry.
Apresentaste-me Simenon e” Maigret”, Bécaud e Aznavour, os Platters e Elvis.
Quantos filmes de Eddi Constantine fomos ver?
Depois foi a separação física. A tropa, o teu casamento, o meu.
E de seguida, a doença e a morte da nossa Mãe, aquele primeiro grande abraço triste. A nossa amizade continuava igual. As confidências, as ideias parecidas, os ideais que ainda não perdemos, apesar dos pesares.
Fomos perdendo mais pessoas queridas. E sempre aquele abraço, forte e triste nos uniu nos piores momentos. Quando perdemos o Pai, foram meses de dor repartida, foi juntos que soubemos do fim.
E mais um abraço, doloroso, muito doloroso, porque como diz Torga, só se é verdadeiramente responsável, quando se perde o pai.
É difícil falar contigo, sem tudo isto me vir à memória.
Mas como no nosso “Casablanca”, haverá sempre Paris. Paris que tu me mostraste, Paris dos meus sonhos de menina. E haverá Itália e uma noite inesquecível na Piazza di Spagna, ou o dia, em Paris, em que jantámos na Tour Eiffel, um passeio nocturno no Sena e o espectáculo no “Moulin Rouge”. Haverá sempre a lembrança da nossa infância feliz em Tomar, as nossas conversas intermináveis.
E sempre a certeza, de que aconteça o que acontecer, seremos sempre irmãos, amigos, confidentes. E um abraço, nos bons e maus momentos, sem palavras, porque nós sabemos o que esse abraço quer dizer.
Hoje o abraço é de alegria, porque fazes anos e estamos juntos. E isso, meu irmão, é muito bom.
É aqui que te quero dar os parabéns, porque quero que saibam que eu tenho o melhor irmão do mundo.
Até um dia destes.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Temporal

A noite de sábado para domingo foi um autêntico pesadelo. Vento que fazia toda a casta de ruídos, atirava coisas ao chão, derrubava árvores, destruía. Chuva que caía sem cessar, em cordas de água que transformavam ruas em rios. Trovoada que metia medo, me fazia dores de cabeça. E eu aqui, quentinha, abrigada, seca, ouvindo a Maria João Pires tocar Chopin, como só ela sabe, quase esquecida da fúria da natureza, quase esquecida do mundo lá fora. Depois veio a realidade de um barulho diferente, um ruído de água a cair mais perto, um burburinho estranho na escada.
Já nos tínhamos deitado, o Nabão estava calado e a dormir, quando o barulho nos sobressaltou. Fomos ver, convencidos que a clarabóia tinha voado, ou algum vidro partido. Nada disso. Um cano tinha rebentado, dois andares abaixo, a água corria e esguichava por todo o lado. Chamados os responsáveis, vedado o cano, pelo dono do andar e o meu marido, que todos encharcados, se revezavam na tentativa de tapar aquela fonte, esperámos os bombeiros e o piquete. Este, que tinha sido o primeiro a ser alertado, foi o último a chegar. Os bombeiros fecharam a torneira do prédio, limparam-se as escadas. Entramos em casa, ele gelado e encharcado até aos ossos, eu cheia de frio e trémula de susto. Deitei-me na cama quente e em vez de dormir, pus-me a pensar naqueles cuja noite iria continuar à chuva, ao vento, encharcados, com fome, sem um teto, uma sopa quente, a companhia de alguém.
Senti-me tão egoísta! Tinha um abrigo, uma cama quente, a companhia do meu companheiro, o meu Nabão aos pés e estava infeliz! Levei muito tempo a adormecer e dormi mal, cheia de culpas e remorsos do meu egoísmo.
O mau tempo continua. E eles continuam lá fora. E continuam a povoar-me a cabeça de imagens tristes, injustas, feias. E continuo a sentir a impotência horrível, para resolver ao menos um só, destes problemas.
Quem são os responsáveis? A quem pedir contas? Será que vai ser sempre assim? Uns com tudo, outros sem nada, nem um teto, uma cama, uma malga de sopa...
É injusto. A vida é injusta. Nós que temos um certo conforto, somos injustos, porque às vezes nos queixamos de não ter coisas, que não nos fazem falta.
Estou triste, revoltada. Só queria saber com quem.
Até um dia destes.