quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Basílica da Estrela, Zimbório e... Rock’n’roll



Em Julho de 1956 eu estava, como sempre, em Lisboa. À tristeza de saber que não voltaria mais a Tomar, contrapunha-se o prazer de nesse ano ter cá o meu irmão. Pela mão dele conheci a Lisboa dos Monumentos, dos Miradouros, dos Bairros Populares, dos jardins.
Uma manhã fomos à Basílica da Estrela. Passámos pelo bonito jardim, atravessámos, e no adro da Igreja estava um grupo de miúdos de alpergatas ( nesse tempo não havia ténis Nike), calças americanas (também não havia jeans Levis), um rádio de pilhas de onde saía o barulho de uma música estranha e um senhor aos gritos. Os rapazinhos torciam-se, atiravam-se ao chão, davam gritos, como se estivessem a ter algum ataque estranho. A provinciana pata brava, que vivia em mim, ficou pasmada com aquilo. Logo o mano mais velho e citadino, se apressou a explicar que era um estilo de música e dança vindas da América. Fiquei mais calma e elucidada, embora um pouco espantada. É que em Tomar tirando os fados, a música popular, os tangos e as valsas, aquela música ainda não era conhecida.
Entrámos na Basílica e fiquei deslumbrada. Já por fora a achara linda, equilibrada, com uma torre de cada lado e aquela cúpula enorme lá em cima. Dentro rendi-me à beleza dela. Foi-me explicado que D. Maria I, a mandara erigir como promessa pelo nascimento de um filho. Os arquitectos e pintores, alguns tinham trabalhado em Mafra. A harmonia e delicadeza das colunas é maravilhosa. A primeira pedra foi lançada em 1776 e a Basílica foi inaugurada em 1789. É de estilo Neoclássico, com três naves. Na do centro destaca-se o túmulo da sua Fundadora. Morta no Brasil, foi o seu corpo trazido para Portugal e ali repousa.
A parte mais aventurosa da visita foi a subida ao Zimbório, que pouco depois foi encerrado ao público. Subimos a escada e no alto eu tive Lisboa aos pés. E Lisboa é tão linda! Os telhados, as trapeiras com sardinheiras, as torres de outras Igrejas, o verde dos jardins, tudo me parecia novo e diferente. O céu azul estava tão perto, que por instantes, julguei lá chegar. O Tejo brilhava ao fundo, sulcado de Cacilheiros e outros barcos, os sons chegavam lá acima esbatidos. Com os olhos cheios de luz, desta luz de Lisboa que não é igual a mais nenhuma, desci com pena.
Foi assim, meu irmão, pela tua mão, pela tua voz, com o teu carinho, que passei amar Lisboa de outra maneira mais profunda, mais íntima.
Até um dia destes.
Maria
  



quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Férias, uma garrafa de porto, 3 cálices e muita juventude



Há cerca de 52 anos, passei um mês de férias com um casal amigo dos meus pais, numa pequena aldeia, chamada São Bartolomeu do Mar, a uns quilómetros de Esposende. Lá conheci, uma prima da amiga com quem fora, uns anos mais velha do que eu, casada e com uma filha pequenina. Tornámo-nos muito amigas. Eles tinham alugado uma barraca de pescadores, que ficava numa ponta do vasto areal. De manhã íamos à praia, mas à tarde, geralmente a ventania era tanta, que não saíamos de casa. A menina dormia a sesta e nós abancávamos à mesa, perto da janela, com a garrafa, os cálices, bolacha Maria, às vezes os dados e conversa para a tarde toda. Todos gostávamos de falar e contar histórias. Ele, mais velho do que a mulher, sobrinho de um conhecido escritor, inteligente, professor de surdos-mudos, tinha uma enorme cultura e grande conhecimento do Porto de outras eras; Ela, pertencia a uma das boas famílias do Porto. Tiveram um romance atribulado, tinham uma vida apertada, mas eram felizes. Discutíamos História, Literatura, até política. O nível da garrafa descia e, para falar verdade o da conversa também. Vinham as anedotas, a má língua, as aventuras e desventuras dos conhecidos. No dia seguinte, um de nós ia à ti’ Albina, misto de tasca, mercearia, retrosaria, talho, buscar outra garrafa, a mais barata claro, e as bolachas.
Às vezes à noite, esvaziado o estábulo das vacas da ti’Albina, ligado o gerador, ligada a televisão, quem queria ver o programa, levava a cadeira ou o banco de casa, pagava 1$00 e via, mais ou menos às riscas, “A Dama das Camélias”, “As duas Órfãs”, “Os três Mosqueteiros”, com direito a leitura das legendas em voz alta e ao agradável e saudável, cheiro a estrume de vaca.
Porque me veio tudo isto hoje à memória? Porque bebi um cálice de Porto à saúde de um familiar que faz anos.
Mais uma vez, a saudade bateu à porta da minha alma. A maioria dos meus companheiros dessas férias, ou morreram, ou nada sei deles.
Dos meus dois companheiros dessas tardes, sei que ele morreu. Dela e da filha nada sei e tenho pena.
Comecei a brincar, acabo triste. Saudades Tony, onde estiveres. Saudades Lai. Por onde andas?
E São ”Bartolonosso”, ainda terá o “banho santo”, no fim de Agosto?
Ai meus 15, aonde vocês vão!
Até um dia destes.
Maria

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Lírio branco




Se te lembro eu vejo um lírio branco.
Era alva a tua pele, a tua alma
Davas a sensação de meiga calma
Com um olhar sereno e um sorriso franco.

Havia nos teus gestos  a doçura
Que as abelhas dão ao doce mel.
Eras meu branco lírio de Israel
A imagem do amor e da ternura.

Tudo em ti era belo e era puro
Tinhas no sorriso sempre aberto
A lealdade do crente bem seguro.

A fé, a esperança, a santa caridade.
Contigo era sempre tudo certo.
E o que sentias era só verdade.

Maria

Até um dia destes.
Maria

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

A Amante




Quadro de Paula Rego


Impõe-se uma breve explicação. Isto passou-se há mais de quarenta anos, num tempo em que às mulheres eram negados todos os direitos. Uma menina que tivesse tido relações sexuais com um homem, tinha várias soluções. Se era rica, ia a um médico especialista que por artes mágicas lhe restituía a perdida virgindade. Se tinha menos dinheiro ia a um médico, geralmente amigo da família, que lhe passava um atestado em que assegurava que a menina tinha tido o azar de cair em cima duma pedra, andara demais a cavalo, qualquer coisa que desse ao futuro esposo a certeza de a ter em primeira mão. Quando era uma pobre moça sem posses, sem conhecimentos, o remédio era ficar solteira e para tia, ou passar de mão em mão. Qualquer rapariga que passasse por isto, dizia-se “enganada”. Quando a menina era menor e as coisas chegavam a tribunal, o custo da pureza dela eram quarenta contos, que o senhor que a tinha “enganado” pagava. Se não acreditam, perguntem.
Conheci uma e aqui começa a história, que ma contou assim:
“Tinha dezassete anos quando o conheci. Dizia-se viúvo, com um filho. Dava-me muitas prendas. Arranjou emprego aos meus irmãos.
Dizia que íamos casar a Fátima e que eu teria um belo vestido branco e flores de laranjeira. Eu acreditei nele. Acreditei tanto, que a flor de laranjeira teria sido uma mentira.
Um dia, a minha irmã descobriu que ele era casado. Eu chorei, ameacei que o deixava. Mandou-me calar e contou tudo à minha mãe. Eu gostava dele e não via maneira de o deixar.
Pôs-me casa, deu-me roupas, jóias, visitava-me todos os dias, mas à noite voltava para casa, para a mulher. Era o que me custava mais. Noites e noites sozinha, numa casa bonita, mas vazia.
As pessoas falam de mim, eu sei, ouço-as: lá vai ela, a amante do empreiteiro. Estas é que a levam direita. Coitada da mulher... Eu também tenho pena dela, mas pelo menos à noite, no Natal nos dias de festa é com ela que está, eu estou sozinha.
Engravidei. Fiquei contente. Não voltaria a estar só. Disse-lhe e ele secamente, mandou-me preparar para ir no outro dia à parteira. Chorei, pedi, insultei. A resposta foi uma carga de porrada tão grande, que já não tive de ir à parteira. Continuei com ele e com a mágoa de nem um filho poder ter. A outra tem três. Tenho tudo, dizem elas. E as noites de solidão? E a casa sem um riso de criança? E os meus dias vazios? Tenho tudo.
Sabe? Ele casou com ela em Fátima. Ela foi de branco e flor de laranjeira. Ele mostrou-me as fotografias.
Pois. Eu sou a outra, aquela que só tem a parte boa de um homem.
Mas não me importava de trocar a casa, os vestidos, as jóias, por um homem só meu, a quem lavasse a roupa e cosesse as meias, um filho, companhia à noite. Mesmo que fosse numa barraca.”
Quem me contou isto já morreu. Fui amiga dela muitos anos e sei a grande mulher que era.
Felizmente que tudo hoje é diferente. As mulheres são livres e conquistaram direitos. Hoje é normal as mães avisarem as filhas dos perigos que correm, aconselharem a pílula ou outro contraceptivo. Naquele tempo a palavra de ordem era: Defender a virgindade de todas as formas. Que estupidez, que hipocrisia, que coisa tão incrível, não mocinhas? Mas era assim.

Até um dia destes
Maria