quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Livros


Neste espaço tenho falado de amigos perdidos, amigos antigos, amigos de agora. Tenho falado das coisas que gosto, das que não gosto, da minha Tomar e outros locais e poucas vezes de livros.
Reparei nisso há poucos dias, por causa dos últimos que li.
Chorei, ri, aprendi, com a “Catedral”. Aprendi mais um pouco sobre a segunda guerra mundial e os sentimentos humanos, com um pequeno livro chamado “Os Jardins da Memória seguido de Amar Simplesmente” de Michel Quint. Para desanuviar, fui buscar um livro de Rosa Lobato de Faria, “Os três casamentos de Camilla S.”.
Li-o com agrado. É daqueles livros que não dão muito que pensar, mas distraem. Como tenho andado mais ou menos em baixo, resolvi pegar noutro livro da Rosinha. Achei o nome um pouco piroso e confesso que não esperava muito dele. Enganei-me. O nome do livro é “Romance de Cordélia”. Pensei de imediato em romances cor de rosa, daqueles em que no fim, os bons têm recompensa e os maus o merecido castigo. Enganei-me, repito.
A história é tudo, menos cor de rosa ou pirosa. Os maus não são castigados e a boa passa as passinhas do Algarve. Está tudo do avesso. A heroína, depois de ter sofrido mais do que será suposto alguém aguentar, acaba na rua, sem abrigo, sem mais amparo do que outro sem abrigo. Fiquei dorida, marcada, com a consciência pesada, a perguntar-me se quando vejo um sem abrigo, o simples facto de ter pena e revolta, serve para alguma coisa. Até aqui, eu via os sem abrigo e naquele momento, sentia que “aquilo” não estava certo. Quando, nas noites de chuva, deitada quente e confortável na minha cama, com um teto a abrigar-me, o meu companheiro, o meu cão, as fotografias dos meus mortos queridos, frente aos olhos, pensava neles, nos que lá fora tinham por cama um cartão, por abrigo trapos e plásticos, por companhia a chuva, o vento, o frio e a trovoada, sentia uma fisgada de dor no peito e na consciência. Depois, egoístamente, adormecia.
A partir deste livro, a chaga ficou aberta. Só agora eu percebi, que por trás de cada sem abrigo há uma história, há um passado. A partir daqui, cada vez que vir um “sem abrigo”, terei que saber porquê. Arriscarei ouvir insultos, acusações, mas tentarei saber porquê eles estão ali. Sei que não poderei fazer nada. Mas aprendi que alguns deles precisam do calor de uma palavra, de um momento da nossa vida, para não se sentirem tão marginalizados.
Há anos uma pobre mulher, meio louca, abrigou-se debaixo dos arcos do meu prédio. As pessoas não gostavam, era horrível, vergonhoso. Conseguiram correr com ela. Foi abrigar-se numas grutas da Calçada de Carriche. Morreu atropelada. Enquanto aqui esteve dei-lhe de comer, algumas roupas velhas. Mas nunca me lembrei de lhe perguntar quem era, donde vinha, como chegara aquela triste situação. Só agora senti remorsos. Porque a velha Palmira, talvez tivesse uma história como a da Cordélia. Talvez precisasse de um pouco de atenção mais do que daquilo que eu lhe dava em silêncio.Eu sei que me estou a arriscar a que me acusem de estar a fazer demagogia barata. É verdade. Porque eu sou ainda pior do que os que os ignoram. Eu tenho a consciência do meu egoísmo e da minha impotência.
Desculpem o desabafo. Não quero dar lições a ninguém. A culpa foi do livro da Rosinha, que não me sai da cabeça.
Vou ficar por aqui, pois já escrevi disparates demais para um só dia.
Até um dia destes.

4 comentários:

Kim disse...

Sabes Maria, eu já senti na pele essa condição de sem abrigo.
É certo que foi num contexto de aventura, mas nem por isso deixei de ser um habitante da rua.
Talvez a única diferença que havia entre mim e os verdadeiros "clochards" é que eu sabia que aquele não era o meu mundo. Era apenas uma questão de tempo.
Mentir-te-ia se dissesse que não gostei de ter vivido essa experiência, mas caredita que foi importante para mim.
Tinha dezoito anos e o mundo a meus pés. Algures no meio da Europa vivi dias azuis, enganando manhãs cinzentas.
Um beijo do Petit Alain para a Petite Marie

Anónimo disse...

Querida Maria,
Eu acredito que cada um de nós pode fazer com que este lugar que habitamos possa ser um bocadinho melhor.
A Madre Teresa dizia: "Sei que o meu trabalho é uma gota de água no oceano, mas sem ela o oceano seria mais pequeno...".
Tenho muitas dúvidas... Vivo permanentemente mergulhada nelas, mas se não acreditar (em e nos outros) sou obrigada a desistir...
Kim, quando mais jovem conheci alguém, que como tu quis conhecer a condição de sem abrigo, e que deixou em mim marcas profundas da sua experiência. Eu nunca tive coragem! Abraço para ti.
Para ti, minha querida, saudades e um beijo
Nemy

Anónimo disse...

Kim (Alain):
Tudo o que fazemos ou vivemos na juventude, é uma aventura. Tudo o que se sabe que se faz transitóriamente, é aventura e quantas vezes, ensinamento.
Ser novo e não ter abrigo, não só é aventura, como às vezes é divertimento, sobretudo mais tarde, quando lembramos a juventude.
Mas ser velho, doente e sem abrigo, em permanência, sem esperança no futuro, amigo, é Desventura. É desgraça. É descer ao fundo de uma enorme escada, sem regresso.
Beijo
Maria

Anónimo disse...

Querida Nemy:
Quem me dera a tua esperança!
Quis, um dia, ser assistente social. O meu pai não deixou. Hoje entendo porquê. Ele, melhor que ninguém, sabia que me faltava estrutura física e moral, para ser a assistente social como eu queria ser. Teria de ser uma entrega total da minha vida inteira. Ele sabia isso. Sabia que quando me entrego a qualquer coisa, vou às últimas consequências. Não tenho meias medidas. Para mim, é tudo ou nada.
Tento fazer o que posso pelos outros. Mas nunca é o suficiente.
Tive uma vida cheia, sou feliz, mas há sempre a sensação de que deixei muita coisa para trás. E isso incomoda-me, magoa-me.
Obrigada pelas tuas palavras amigas. Quando nos vemos? Há tantas coisas que te queria dizer.
Beijo, minha doce e esperançosa amiga.
Maria