domingo, 12 de agosto de 2012

Carta a meu Avô, “João Semana”


Querido Avô:

Não te conheci, mas sei a tua história.
Chamavas-te António e eras médico. Tinhas um consultório onde recebias toda a gente. Os que tinham dinheiro pagavam, os outros não. Contaram-me, que chegavas a dar remédios e dinheiro, aos mais carenciados.   Nunca te negaste a visitar um doente, de dia ou de noite. Eras adorado pelos moradores do bairro onde moravas. Quando morreste, eles quiseram fazer-te uma estátua. A Avó não quis. Achou que não gostarias.
Quando te formaste, fizeste o ”Juramento de Hipocrates”, que cumpriste na totalidade.
Lembrei-me de ti, das histórias que ouvi contar, de médicos irrepreensíveis que conheci e conheço, porque se passou um caso comigo, que me deixou espantada, revoltada.
Tu não sabes, mas existe há uns anos, uma coisa chamada Serviço Nacional de Saúde, que segundo as tuas ideias, serviria para acudir a todos, sobretudo aos pobres. Todos temos um cartão, que em princípio, nos daria acesso a tratamento médico, incluindo assistência de médico de família. Há quatro anos, o meu doutor, reformou-se e, nunca o substituíram. Tenho uma médica particular óptima, mas não dá jeito nenhum pagar uma consulta, de cada vez que tenho necessidade de medicamentos. Aqui há um mês, atribuíram-me um médico. Marquei consulta e lá fui, conhecer o senhor. Logo de entrada assustei-me, com o aspecto dele. Mal encarado, bruto. Tentei mostrar-lhe as análises feitas dias antes. Avisou-me que não estava ali para dar consultas, mas sim, para passar receitas e às vezes análises. Consultas, só no consultório.
Agradeci, disse que já tinha médica particular, passou-me duas receitas e, saí.
Entendes, Avô? Eu não. Só quem tem alguns tostões pode estar doente? E os outros? Morrem? Não têm dinheiro para o médico, não podem pagar os medicamentos, sofrem e morrem.
Que me perdoem os médicos, que felizmente ainda existem, mas alguns doutores, não fizeram o tal juramento. Ou fizeram e esqueceram?
Se foi esse o caso, aqui vai a cópia:

Eu juro, por Apolo, médico, por Esculápio, Higeia e Panaceia, e tomo por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue: estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, porém, só a estes.
Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva.
Conservarei imaculada minha vida e minha arte.
Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam.
Em toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução sobretudo longe dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados.
Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.
Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário aconteça.
Minha Doutora, meus Doutores, Avô, perdoem a minha revolta.
Acho que para vós, também deve ser triste. Dantes, a medicina era um sacerdócio. Hoje, para alguns, é um negócio.
Fico por aqui, Avô. Deves estar espantado. O mundo, as pessoas, mudaram muito, desde o teu tempo.
Beijinhos à Avó, aos meus Pais e Tios e, para ti, da neta
Maria

Até um dia destes e não adoeçam, se não tiverem dinheiro.
Maria         


14 comentários:

Alva disse...

Olá Maria

Medicina é o único curso que dá trabalho imediato atualmente, não me espanta que muitos dos estudantes de Medicina tenham pouca vocação para esse curso.
Muitas vezes acontece que têm notas bastante altas a todas as disciplinas e que os pais ou mesmo a sociedade em geral os "incline" para esse curso porque é "o que dá emprego", é "aquele onde se consegue dinheiro" e porque é "aquele que dá prestígio".
Depois, com tanta falta de médicos em Portugal, fazem contratos em Cuba, Brasil, Espanha, etc talvez com médias bastante mais baixas do que os nossos "cérebros" (suponho que pagando balúrdios para terem lucro em vir para cá)... e ainda reduzem as vagas nas universidades portuguesas!!
Ai este país, este país... que tanto amo mas está virado do avesso...

Desculpa o desabafo.
Bjs mil
Da tua Pequenina

Maria disse...

Querida Pequenina:
Os médicos têm que ganhar para viver, como qualquer pessoa. Só que ninguém deve ser médico, só com o fim de ganhar bem. Ter vidas nas mãos, é difícil. Felizmente ainda há médicos, para quem a medicina, é mais do que o negócio. A minha médica particular, é um ser de eleição. Boa, competente, sabendo ouvir o doente.
Este, que apanhei, é um mercenário.
Também amo o nosso país. Vivo triste, por o ver tão mal, mas ainda acredito que um dia, será melhor.
Beijinhos, Pequenina.
Está a chover, sabes? Tinha saudades da chuva.
Maria

Olinda Melo disse...


Querida Maria

'João Semana', figura querida de 'As pupilas do Senhor Reitor', de Júlio Dinis, um dos meus autores preferidos. Com ele recorda o seu Avô que dignificava o 'Juramento de Hipocrates', com as suas acções, no tratamento dos doentes, na sua vida digna.
Muito oportuno este seu post, falando também do SNS, hoje em dia já descaracterizado, e da forma como a assistência médica vai ficando desumanizada, esquecendo-se alguns médicos da sua própria missão e do juramento de Hipocrates, que, em tão boa hora, aqui transcreveu.

Parabéns e obrigada.

Beijinhos

Olinda

Maria disse...

Querida Olinda:
Ultimamente, por azar, tenho lidado com muitos médicos. Há os bons, os maus, os péssimos e, aqueles que deviam ter escolhido outra profissão.
Este de que falo, devia ser estivador, carroceiro, sem querer faltar ao respeito a estes trabalhos.
Para médico, falta-lhe tudo: Saber, humanidade, humildade, honestidade.
Obrigada pelo seu comentário, amiga.
Beijinho
Maria

Je Vois la Vie en Vert disse...

Eu, infelizmente, tenho conhecido muitos médicos mas quase só conheci uns especialistas. Realmente há os bons e há os maus mas em Portugal sempre me faltou um médico de família particular, isto é, de clínica geral, como era o teu avô e como eu estava habituada na Bélgica.
A minha única experiência com a minha médica de família da caixa, para mim, foi para esquecer porque a segunda vez que fui ter com ela foi quando eu trabalhava e que ainda era preciso ir buscar uma alta depois duma baixa(ela tinha-me dado uma baixa duma semana para tratar uma gripe). Sem olhar para mim quando entrei no consultório, ela disse-me "vem prolongar a alta, não é ?". "Não, respondi, estou curada, venho buscar a alta" e foi nessa altura que olhou para mim espantada e passou-me o papel. Numas médicas destas, eu não podia confiar quando elas apoiam o absentismo laboral!

Beijinhos, minha querida Maria

p.s. Não respondeste ao meu comentário - terá ficado no SPAM ? nem me enviaste um email como prometido...

Maria Rodrigues disse...

Minha amiga excelente texto. O nosso sistema de saúde cada vez está pior e pobres daqueles que não têm dinheiro para se tratar.
Estou de férias mas passei para deixar um beijinho.
Bom fim de semana
Maria

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Tive, na minha família, alguns dedicados médicos que que foram verdadeiros sacerdotes. Hoje, no Brasil, está como aí: pessoas morrendo em corredores de hospitais, por falta de atendimento, e outras mazelas...
Sua carta ao avô, procede...e como!
Temos que rezar, torcer, para não ficarmos doentes (o que é difícil, ainda mais depois de "certa" idade, como a nossa, mana).

Beijinhos, querida Maria!

Maria disse...

Querida Verdinha:
Tive durante anos a sorte, de não precisar dos médicos da Caixa. A Empresa onde o meu marido trabalhava, tinha uns serviços clínicos muito bons. Médicos e médicas, cuidadosos, competentes. Quando ele se reformou, tivemos que recorrer à Caixa. O médico era bom. Ouvia dizer mal de alguns, mas aquele era mesmo bom. Há 4 anos reformou-se. Deixamos de ter médico de família.
Tenho a minha médica particular muito boa, mas se preciso de receitas de medicamentos, que são muitos e caros, lá tenho que ir à Caixa.
Recentemente, atribuíram-me um médico de família. Fiquei assustada assim que o vi.
Conheces-me bem e sabes que sou sensível. Depois, passou-se o que contei.
Logo que tenha um bocadinho de disposição, envio-te um Email.
Ando mandriona para escrever. Durmo pouco e mal. Precisava de uma cura de sono.
Sentes-te melhor?
Abraço grande
Maria

Maria disse...

Olá Maria:
Obrigada pela visita e desejos de boas férias.
Beijinho
Maria

Maria disse...

Lucinha querida:
A saúde está muito doente, em todo o lado.
Desculpa não ter passado na "Cadeirinha". O calor, a falta de dormir, tiram-me a vontade para tudo.
Vou tentar ir ao teu blogue.
O Henrique está um pouco melhor.
Beijinho, maninha brasileira.
Maria

Ritinha disse...

Boa Noite Maria,
O seu avó era com certeza um grande homem.
Os médicos em Portugal só se preocupam em ganhar dinheiro. Esse episódio é vergonhoso. Graças a Deus ainda há excepções.

Beijinho
Rita

Maria disse...

Olá Ritinha!
No tempo do meu Avô, os médicos eram médicos por vocação, não para serem ricos.
Ainda há bons médicos. Já conheci muitos. A minha médica particular, é muito boa.
Este saiu-me na rifa.
Beijinho
Maria

Maria Eduardo disse...

Passei pelo seu Blogue e despertou-me a atenção o Template, "Alcatruzes da Roda", de Tomar, cidade que visito muitas vezes porque o meu marido é natural desta cidade.
Também li esta carta que escreveu ao Seu Avô, que me sensibilizou imenso, pois os médicos de outros tempos eram muito mais humanos, humildes e honestos, tratavam os doentes com muito carinho e só pagavam as consultas e os remédios se o podiam fazer, não é como hoje, pois encontramos muitos médicos oportunistas, insensíveis e incompetentes, salvo as raras excepções que felizmente ainda as há.
Curiosamente, o Avô do meu marido, também era médico, nesta cidade e chamavam-lhe "João Semana" pois exercia a sua profissão nos mesmos moldes do senhor Seu Avô.
Vou passando pelo seu Blogue, pois gostei de o visitar.

Maria disse...

Maria Eduardo:
Também nasci e vivi em Tomar. Adoro a minha linda terra.
Estou cheia de saudades dela, mas ultimamente não tenho lá ido.
Obrigada e espero vê-la por aqui mais vezes.
Abraço
Maria