sexta-feira, 2 de novembro de 2012

A Amante




Quadro de Paula Rego


Impõe-se uma breve explicação. Isto passou-se há mais de quarenta anos, num tempo em que às mulheres eram negados todos os direitos. Uma menina que tivesse tido relações sexuais com um homem, tinha várias soluções. Se era rica, ia a um médico especialista que por artes mágicas lhe restituía a perdida virgindade. Se tinha menos dinheiro ia a um médico, geralmente amigo da família, que lhe passava um atestado em que assegurava que a menina tinha tido o azar de cair em cima duma pedra, andara demais a cavalo, qualquer coisa que desse ao futuro esposo a certeza de a ter em primeira mão. Quando era uma pobre moça sem posses, sem conhecimentos, o remédio era ficar solteira e para tia, ou passar de mão em mão. Qualquer rapariga que passasse por isto, dizia-se “enganada”. Quando a menina era menor e as coisas chegavam a tribunal, o custo da pureza dela eram quarenta contos, que o senhor que a tinha “enganado” pagava. Se não acreditam, perguntem.
Conheci uma e aqui começa a história, que ma contou assim:
“Tinha dezassete anos quando o conheci. Dizia-se viúvo, com um filho. Dava-me muitas prendas. Arranjou emprego aos meus irmãos.
Dizia que íamos casar a Fátima e que eu teria um belo vestido branco e flores de laranjeira. Eu acreditei nele. Acreditei tanto, que a flor de laranjeira teria sido uma mentira.
Um dia, a minha irmã descobriu que ele era casado. Eu chorei, ameacei que o deixava. Mandou-me calar e contou tudo à minha mãe. Eu gostava dele e não via maneira de o deixar.
Pôs-me casa, deu-me roupas, jóias, visitava-me todos os dias, mas à noite voltava para casa, para a mulher. Era o que me custava mais. Noites e noites sozinha, numa casa bonita, mas vazia.
As pessoas falam de mim, eu sei, ouço-as: lá vai ela, a amante do empreiteiro. Estas é que a levam direita. Coitada da mulher... Eu também tenho pena dela, mas pelo menos à noite, no Natal nos dias de festa é com ela que está, eu estou sozinha.
Engravidei. Fiquei contente. Não voltaria a estar só. Disse-lhe e ele secamente, mandou-me preparar para ir no outro dia à parteira. Chorei, pedi, insultei. A resposta foi uma carga de porrada tão grande, que já não tive de ir à parteira. Continuei com ele e com a mágoa de nem um filho poder ter. A outra tem três. Tenho tudo, dizem elas. E as noites de solidão? E a casa sem um riso de criança? E os meus dias vazios? Tenho tudo.
Sabe? Ele casou com ela em Fátima. Ela foi de branco e flor de laranjeira. Ele mostrou-me as fotografias.
Pois. Eu sou a outra, aquela que só tem a parte boa de um homem.
Mas não me importava de trocar a casa, os vestidos, as jóias, por um homem só meu, a quem lavasse a roupa e cosesse as meias, um filho, companhia à noite. Mesmo que fosse numa barraca.”
Quem me contou isto já morreu. Fui amiga dela muitos anos e sei a grande mulher que era.
Felizmente que tudo hoje é diferente. As mulheres são livres e conquistaram direitos. Hoje é normal as mães avisarem as filhas dos perigos que correm, aconselharem a pílula ou outro contraceptivo. Naquele tempo a palavra de ordem era: Defender a virgindade de todas as formas. Que estupidez, que hipocrisia, que coisa tão incrível, não mocinhas? Mas era assim.

Até um dia destes
Maria



14 comentários:

MCP disse...

Amiga Maria,
Como vai a sua disposição? Espero que os piores momentos já tenham passado e se sinta com mais energia.
Gostei de ler o que escreveu, não que seja um relato animador, mas através dele podemos ver como a sociedade de há 50 ou até 40 anos atrás, tratava e considerava a mulher.
Pelo menos nesse aspecto e noutros também, a evolução foi grande, e hoje, salvo algumas excepções, a mulher tem liberdade para viver a sua própria vida sem se preocupar com o que os outros possam pensar.
Finais felizes, como o de Lídia, ainda hoje, não há muitos...só em sonho.
Sonhemos, que o sonho comanda a vida.
Beijinho grande Amiga.
MCP

Maria disse...

Olá MCP,
Esta história é verdadeira. Calcule que nesse tempo, fui criticada por ser amiga dela. Uma senhora casada não anda com mulheres dessas! Era a conversa de toda a gente. Algumas, senhoras casadas e mães de família, muito honestas pela frente, mas traíam os maridos. Enfim!. Quanto a ter mudado, mudou um pouco, sim, mas ainda há muita coisa errada. Uma parte das mulheres, as mais velhas, ainda passam muita coisa. Por outro lado, há as que fazem dos maridos e companheiros, criados para todo o serviço, o que também não está certo.
É assim a vida, minha amiga. Temos que tentar vivê-la o melhor possível.
Abraço grande
Maria

Um Jeito Manso disse...

Olá Mary,

Grande texto! Gostei muito de ler a história da sua amiga e as suas palavras. Sei bem como isso era. Quando eu era miúda, foi viver para uma casa na nossa rua uma mulher muito bonita que era a amante de um médico muito importante na cidade, casado, uma família grande e feliz. Ele tinha um carro enorme e ia visitá-la uma ou duas vezes por semana. Ela andava muito bem vestida. Mas lá no bairro ninguém lhe falava, talvez apenas a minha mãe. Olhavam-na de lado e ela própria não tentava falar com ninguém, devia sentir a hostilidade. Tinha um ar triste e vivia sozinha, fechada em casa. Era muito bonita, tinha um grande casaco de peles e eu achava-a misteriosa, talvez porque nunca a via no jardim nem à janela.

E também me lembro muito bem de uma rapariga que tinha a fama de ser 'fácil'. Nunca me lembro de ter dado por nada de extraordinário mas o facto é que as outras raparigas estavam instruídas para não se darem com a Manela.

Penso que tudo isto são histórias mais ou menos do passado mas é provável que, nos meios pequenos, ainda existam estigmas contra algumas pessoas.


Um beijinho, Mary!

PS: Adorei a sua mulher da Paula Rego...

Elvira Carvalho disse...

Minha amiga a vida de antigamente era de uma grande hipocrisia. As pessoas não podiam namorar sozinhas, nem beijar que era um escandalo, mas muitas apareciam grávidas, e nunca se viu tanto filho de pai incognito.
E mais, as mulheres que se separavam dos maridos para viverem outro amor, e desse amor tinham filhos, eram obrigados a registar os filhos não com o nome dos pais, mas com o nome dos maridos.
Um abraço e bom fim de semana

Isabel disse...

Uma história que se repetia e que se repete, na forma de violência doméstica. Não consigo perceber como é que uma mulher(ou homem) se sujeita a ser maltratado e continua a gostar(ou pensar que gosta) de quem o maltrata.
É estranha a alma humana.
Gosto muito da pintura da Paula Rego.
Um abraço e bom fim-de-semana

Kim disse...

Minha petite Marie!
Malgré tout, ainda hoje é assim! A única diferença é que hoje já nenhuma mulher quer trocar a casa, as jóias, o dinheiro, pela certeza de ter alguém a seu lado a quem possa coser as peúgas, aturar os pimpolhos e comer uma malga de sopa.
Mudam-se os tempos ...
Mas, naquele tempo a mulher era uma desgraçada. Hoje, felizmente, queimou o soutien e libertou-se!
Beijinhos minha querida!

Olinda Melo disse...


Querida Maria

Este é o retrato de uma sociedade de há bem pouco tempo, manietadora e cruel em relação às mulheres.Triste daquela que caía em desgraça; muitas eram postas fora de casa, sem piedade,com instruções para a família não lhe falar sequer.O mesmo acontecia no sítio onde trabalhavam. Ficavam sem emprego. Felizmente, as coisas hoje em dia mudaram. As gerações de agora têm problemas sim, mas de outra natureza.

Tenha uma muito boa noite.

Beijinhos

Olinda

Maria disse...

Amiga:
Pobres mulheres que pareciam ter tudo e não tinham nada. Sós, desprezadas, faladas.
Esta, além de tudo, trabalhava numa loja, pertencente ao amante, não recebia um tostão, via as pessoas entrarem e saírem, quase sem falar com ela. Sempre triste. Adorava crianças e nunca me esquecerei da alegria dela, quando a convidava para os anos dos meus filhos. Aqui era tratada como minha amiga, porque nunca disse aos meus familiares, a situação dela. Era boa, amiga de verdade. Gostava muito dela e era a minha confidente.
Fui muito criticada pelas vizinhas, mas eu nunca tive muitos preconceitos, nem fazia o que estava certo, para os outros. Só fazia o que o coração mandava. Ainda hoje sou assim. Não abdico das minhas ideias, por nada.
Obrigada pelo comentário.
Abraço grande
Mary

Maria disse...

É verdade Elvirinha.
Conheci um casal, que tendo tido um filho antes de ela se divorciar, teve de registar a criança, como filho de mãe incógnita e do pai verdadeiro. Quer coisa mais ridícula e hipócrita?
Tempos estúpidos, cheios de "parece mal" e preconceitos parvos.
Obrigada, miga
Abraço
Maria

Maria disse...

Isabel:
Foi a Jeitinho que me fez gostar da Paula Rego. Acho que ela vê as mulheres por dentro e reproduz o que vê.
Também me pergunto, como alguém pode gostar de uma pessoa que a (O) maltrata. Como nunca fui maltratada, felizmente, não sei se continuaria a gostar. Segredos da alma humana.
Obrigada e um abraço
Maria

Maria disse...

Kim, meu amigo,
Olha que ainda há muitos casos destes. E também há homens maltratados, agredidos. Se eu fosse a minha santa avó diria: quando a falta de respeito entra pela porta, o amor sai pela janela. Como não sou ela, acho que continua tudo mais ou menos na mesma. O verdadeiro amor, já não é o que era. Aí tens razão. A maioria das mulheres quer é dinheiro, status, boa vida.
Abraço
Maria

Maria disse...

Querida Olinda:
Algumas coisas mudaram para melhor, outras para pior. Perderam-se muitos valores, que fazem muita falta. Ganhou-se uma realidade relativa. Estamos a enfrentar uma crise enorme, em todos os sentidos. Não há respeito, nem afectos que resistam.
Não gosto deste mundo, onde cada um só olha para si próprio, salvo raras excepções.
Abraço grande
Maria

Tété disse...

Querida Mary,
Nunca a visitei porque nunca tive conhecimento deste seu cantinho.
Hoje, ao ler os comentários da Jeitinho em resposta ao que escreveu sobre a história da Lídia e do Paulo, apercebi-me que tinha um blogue e tentei pela lógica procurar o seu endereço.
Adorei a sua história que, sendo real, é mais uma no universo de há anos, onde a hipocrisia era a capa de muitos outros casos, esses sim, bem piores e desonestos.
Estive três dias no Alentejo numa aldeia bem retirada do concelho de Elvas, e curiosamente apercebi-me que tudo o que se apontava noutros tempos, ainda se sente no grande interior do nosso país como se o tempo não tivesse passado.
Claro que vou voltar sempre, agora que cá cheguei sem convite.
Grande beijinho
Teresa

Maria disse...

Querida Tèté:
Foi com muita alegria que recebi a sua visita. Agradeço-lhe por ela e pelo comentário.
Infelizmente, não é só no Alentejo, que as coisas estão mais ou menos na mesma.
Damos-nos conta disso, no aumento da violência doméstica, que aumentaram.
Há mais conhecimento de casos desses, talvez porque as pessoas já perderam, um pouco, o medo e a vergonha de falar.
Volte sempre que queira. Gosto de a ver por aqui.
Abraço grande.
Mary