quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A Dona do Passado


Fez ontem 34 anos que partiste. Contigo foram as histórias do passado, que me contavas vezes sem conta. Sentada no chão, a cabeça nos teus joelhos, a tua mão acariciando a minha cabeça, pedia: “Conta avosinha”. E tu nem perguntavas o quê. Sabias bem o que eu queria. Histórias de família, ora cómicas, ora dramáticas, o teu longo namoro com o avô, descrição das roupas e factos do teu tempo, histórias de outros tempos nos quais gostaria de ter vivido.
Tiveste uma infância e adolescência de menina rica. Professores em casa, uma cultura acima do normal, que fazia jus à tua inteligência. Tocavas piano e falavas francês e outras línguas, bordavas na perfeição. Casaste, e a vida sorriu-te até ao dia em que o avô partiu, cedo, demasiado cedo. Com seis filhos abaixo dos quinze anos, tudo mudou. Criar quatro rapazes e duas garotinhas, foi difícil. Quando eu nasci, já tinhas vários netos. Fomos doze, contando com as duas que morreram pequeninas. Dois dos filhos foram levados pela morte, muito cedo. Sofreste muito, avó. Eu sei.
Nunca te vi chorar. Acho que as lágrimas secaram como as minhas.
Frágil por fora, mas com um espirito muito forte, a tudo resiste. Enquanto tu quiseste. Um dia, com 98 anos, uma gripe de nada, atirou-te para a cama. O enfermeiro foi pôr-te o soro e o oxigénio, e mal a porta da rua bateu atrás dele, arrancaste tudo e só murmuraste: “Não quero mais”. Pregaste os olhos no retrato do avô em frente à cama, e passada meia hora foste embora. Dona de ti até ao fim, não foi avó? Senhora da tua vontade e da tua vida, até ao fim.
Eu neguei-me a acreditar. Como dizia em pequena “as avosinhas não morrem”. Senti-me traída, enganada. Depois tive que aceitar que até a minha avó tinha a sua hora.
Ao fim de todos estes anos, ainda me custa viver sem ti. Sabes? Nunca te menti. Não era capaz. Aqueles olhos verdes, liam até ao fundo da minha alma. Ficaram as histórias, avó. Lembro-me de todas. Encheriam vários livros se as contasse.
Um beijo na mão, avó e a tua benção. Como há 34 anos, como todas as noites antes de dormir.
Até um dia destes.

9 comentários:

Osvaldo disse...

Maria;

Felizes das crianças que puderam e souberam aproveitar a sabedoria dos avós. Foi com eles, os avós, que muitos de nós fomos advertidos com muito carinho para as vicitudes de uma vida que se expunha na nossa frente.
Quantas saudades eu sinto de todos eles porque foram avós maravilhosos.

bjs para ti e abraços para o Vasco e João

da Anita e Osvaldo

Paixão Lima disse...

A dona do passado, sempre presente. Gostei do que li. Uma homenagem à sua Avosinha, direi até, a todas as Avosinhas. Uma homenagem com sentido, sentida e comovente. À Mãe que foi Mãe duas vezes. Também tive uma Avosinha assim. Que não foi Mãe duas vezes, foi mais que isso. Foi Mãe três vezes. Foi ela que me criou pois fiquei órfão de Mãe aos dez anos. Com um tema tão sensível, não resisti a fazer este breve comentário.
Despeço-me com amizade.

Maria disse...

Osvaldo:
Só conheci esta avó. Minha mãe ficou sem pais muito novinha. O pai do meu pai, como disse, morreu cedo. Assim, foi por esta avó que conheci todos os outros. Ela era sobrinha da minha outra avó, conhecia-a bem.
É das pessoas que mais amei e admirei.
Abraços do João e do Vasco e beijinhos para ti e Anita da
Maria

Maria disse...

Paixão Lima
Quase todos nós temos uma avó ou um avô, especiais. Eu, só conheci esta e era mesmo muito especial. Sabia tudo. Tinha, não só uma grande cultura por educação, mas outra maior ainda, a da vida, dos desgostos, dos muitos anos vividos.
Depois dos 90, ainda ajudou a criar uma bisneta.
Obrigada pelo seu comentário.
Com amizade
Maria

Laura disse...

Olá, todos ou quase todos tivemos avós lindas, a minha foi única, conseguia amar-me mais que a minha mãe! Era a avó Laurinha, sempre feliz quando estavamos lá, estivemos uns bons anos sem vir cá depois do 25 de Abril, era uma saudade, mas quando vinhamos estavamos tão felizes na casa dela, era tão bom o dia a dia em casa, no campo, onde fosse...A avó era uma Senhora, educada, cozinhava ...faz favor... sabia de tudo um pouco, culta e com pouca escola, lia e falava para as gentes na Igreja, era convidada a falar, ehhh acho que tenho o Dom dela...enfim, respeitada e amada por todos, minha querida avó laurinha, ainda hoje a sinto comigo quando a vida dói mais..
Abraço a ti..laura

Alva disse...

O avós marcam-nos sempre... =)

Muitos beijinhos,
Estrela d'Alva

Maria disse...

Laurinha
A tua avó Laurinha, a minha avó Aldinha, as avós de todos, são seres de outro planeta. Por experiência sei o que é ser avó. Alguém disse que ser avó é ser mãe com mel. Com a minha tinha um entendimento perfeito. Ainda hoje, dou comigo a pensar no que ela me diria, em algumas alturas.
Vais ver, quando chegar a tua vez.
Beijinhos
Maria

Maria disse...

Pequenina
O bom das avós, é que não precisam de educar, estão mais disponiveis, são muito tolerantes.
Os meus filhos tiveram avós e avôs formidaveis. Infelizmente, já todos partiram. O último foi o meu pai, que era um avô fora de série que eles adoravam. Falam deles com muita ternura e saudade.
Vivam os avós!
Beijinhos
Maria

Kim disse...

Que linda a "estória" Maria.
É parecida contigo a tua avó.
A vida é madrasta mas dela nos ficam grandes momentos que os seus gestos fizeram.
Como era bom ter avós!