domingo, 27 de junho de 2010

Madrugadas e manhãs de Lisboa


Era por esta altura do ano, um pouco mais tarde do que agora, que começavam as Férias Grandes. Ainda em Tomar e depois no Porto, não passavam muitos dias até começar a chatear os meus pais para vir para Lisboa para casa da Avó. Era a Avó, que tinha passado o mês de Maio connosco em Tomar, eram os tios e tias, as primas que adorava e... Lisboa. Esta Lisboa que eu já amava, onde me sentia feliz. A casa da Avó ficava perto da Praça do Chile, numa travessa pequena que começava por umas escadinhas e terminava na Rua Carlos José Barreiros. Os moradores, dos mais variados extractos sociais, iam do Almirante Mendes Cabeçadas, ex-presidente da República, até à Benvinda ex-peixeira da Ribeira e bêbeda por vocação. Havia tudo. Todos respeitavam a Avó, viúva à moda antiga, já entrada em anos, delicada para todos mas, guardando as distâncias. Era uma travessa estranha. De um lado casas de dois e três andares, habitadas por gente da chamada classe média com pouco dinheiro, do outro um casarão forrado a azulejo, de aspecto decadente com janelas tapadas com jornais, verdadeiro cortiço, de onde saíam as pessoas mais variadas, um Pátio Lisboeta à moda antiga e algumas casas velhinhas e pobres. Era o lado onde havia ainda menos dinheiro e mais miséria.
A casa da Avó era alta e pouco larga. No rés-do-chão, com duas janelas para a rua, dois quartos interiores, uma sala grande que dava para um jardim pequeno, onde ela tinha canteiros com roseiras, brincos-de-princesa, erva da fortuna, um mundo pequenino e fresco. Na parte junto à casa, ainda havia vasos de begónias, avencas, fetos. Tinha uma cozinha pequena e uma casa de banho. Durante anos tomamos banho numa enorme tina redonda, que mal cabia na casa de banho. Depois, numa altura de mais dinheiro e contenção de despesas, a tia pôs uma banheira a sério.
Agora que está tudo nos devidos lugares, passamos à história.
Eu dormia com a minha prima num quarto interior, onde entrava uma nesga de luz pelas bandeiras junto ao teto, que davam para a sala. Sempre tive o sono leve. Ás cinco e pouco acordava com o guincho do 1º eléctrico na Praça do Chile. Já entrava uma nesga de luz pela bandeira e eu ficava a olhá-la à espera do 2º ruído da madrugada Lisboeta. E ele chegava pouco depois, quando o barulho das rodas da carroça da leiteira subia as pedras irregulares da rua. Sentia-a entrar no prédio, subir as escadas carregada com a bilha, despejar o leite nas vasilhas deixadas junto às portas, incluindo a nossa. Ela ia embora e um pouco depois chegava o padeiro, que delicadamente atirava o cesto contra a porta, posava o cesto, subia a escada com grandes passos barulhentos e deixava o pão nos sacos pendurados nas portas. Descia a correr e saía com o mesmo bater com a porta delicado. Eram sete horas. A menina que trabalhava longe, descia do primeiro andar com os tacões dos sapatos batendo nos degraus, a tia levantava-se para ir trabalhar, arranjava-se, preparava o pequeno almoço dela e das “meninas”, café com leite (sem leite no meu caso) e grossas fatias de pão com manteiga, fazia o chá e as torradinhas da Avó, arranjava a bandeja e levava o pequeno almoço à Avó que o tomava na caminha. Depois de comer, dizia que ia rezar o terço, pegava nele e adormecia de novo. A tia saía, mas antes dizia-nos num tom trocista: Não vão aborrecer a Avó, nem façam barulho, porque ela está a rezar. Na rua, abria a taberna do lado, os copos batiam no balcão, as peixeiras chinelavam calçada acima e a Benvinda (Malvinda, como lhe chamavamos), mulheraça de grande peito, cara vermelha, cheirando a vinho como um carroceiro, já tinha chegado à janela do cortiço, descia uma seira pela corda e gritava: “Ó Tóino! (era o moço da taberna), dá-me aí 5 litros de lixívia e 1 litro de caloreto”. O Tóino sabia o código: 5 litros de vinho e um de bagaço. A Benvinda tinha muitos filhos, devia ser para lavar a roupa, achava eu. Passado um bocado os efeitos apareciam. Ela cantava o Fado da Carta, a Rosa Enjeitada, berrava com os filhos, chamava todos os nomes ao chóchinhas do marido, insultava quem passava. Só quando a minha Avó chegava à janela se calava e cumprimentava com toda a delicadeza: “Bom dia senhora dona Aldinha, dormiu bem?” A Avó respondia com um sorriso e a Benvinda lá recomeçava a ladaínha.
A Avó só se levantava às dez horas. Levava o resto da manhã a fazer a demorada toilette. Só as dezenas de ganchos que punha no cabelo levavam horas. Eram os invisíveis para prender o carrapito e uns de tartaruga para enfeitar, mais duas travessas transparentes para manter todos os cabelos no lugar. Cheirava a água de rosas e a violeta. Toda de negro, nunca saía sem chapéu com véu sobre os olhos, nem para ir a casa da irmã que morava perto da Igreja de São Jorge de Arroios, onde meus pais casaram. Deitaram abaixo a linda igrejinha para fazerem uma coisa a que chamam igreja e mais parece um armazém de cimento armado.
Já não há Avó, nem Pais, nem igreja. Quem morará na “Casa da Avósinha”? Apenas vive na minha lembrança com cheiros, ternura, gritos de miúdos... e saudades, muitas saudades da Avó, dos tios, dos primos, de mim, da casa, do céu azul purinho de Lisboa, riscado de gaivotas e pombos, das andorinhas.
Tudo isto porque uma madrugada destas acordei com o ruído do 1º autocarro a chegar ao meu bairro. E meia a dormir, pensei ouvir o eléctrico do Chile.
Malhas que o sono tece. O sono e o sonho porque eu sonho muito com estes tempos, com a Avó e com a casinha de Arroios.
Até um dia destes.

19 comentários:

Vasco disse...

Bonita história de lembranças da nossa infância. A essa casa só encontro comparação com uma casa na Av. Emídio Navarro, em Cascais.
Aqui há tempos, falei na minha espécie de blogue, da casa a que te referes. Passei lá à porta, há uns meses - anos depois da tia morrer e de lá não estar ninguém nosso - e encontrei tudo fechado.
Agora, essa Benvinda, o que eu já tenho falado dela... à tipicamente alfacinha...

Beijinhos

Maria disse...

Corvo
Naquela casa que ainda conheceste, já sem a minha Avó, vivi momentos muito felizes. Também é certo que lá deixei de ver 3 pessoas que muito amei: a Avó, a tia Bia e a minha Margarida. Prima, amiga, confidente, companheira de alegrias e tristezas. Tenho tantas saudades daquela casa, como da quinta, da Ria, menos um pouqinho do que tenho da minha casa de Tomar e de Tomar.
Não gosto de passar na Emidio Navarro. Para mim chama-se Av. das sombras e saudades. Quase de 100 em 100 metros levanta-se uma lembrança doce e triste.
Benvindas aqui há muitas. Todos os dias me lembro dela e nunca por bons motivos.
Beijinho
Mãe

Unknown disse...

Mariamiga

Pois, pois, ainda apanhei o tempo do meio tostão. O que quer dizer que os anos que passaram - e que não voltam mais, 'tralmente - ainda me espantam.

Eram os eléctricoa abertos onde ia ao Campo Grande com a menina Olívia, criada (era assim que se dizia, sopeira era para a malta um tanto desbragada) lá de casa.

Eram os tempos em que os bonecos da bola custavam dois um tostão e para ganhar a bola de cótechu era preciso «rebentar» a caixa, ou seja conseguir comprar todos os rebuçados que traziam o Peyroteu, o Azevedo, o Caldeira e o Passos, do meu Sepótingue, o Moreira, o Félix e o Rogério Pipi, do malfadado Binfica e mais.

Eram os tempos dos bandos de perus pelo Natal, tocados com uma caninha por uns homens de Odivelas (longíssimo) e destinados a ser embebedados antes de lhes passarem a faca pelo pescoço.

A minha casa na Rua Filipe da Mata, 122, 2.º Esquerdo, sem código postal, ainda lá está. Agora, com o meio caminho andado. Um destes dias passei por lá. Confesso que não tive saudades; apenas recordações.

Abs maxis e qjs para tu

PS - Vai ver a Travessa. Há gente que diz que sim, outra que diz que não. Isto é, está instalada a confusão. Até rimalhei

Alva disse...

Maria,

Gosto tanto das tuas histórias, tanto tanto que nem imaginas.
Fazem-me lembrar as histórias que os avós contam aos netos... que são simplesmente encantadoras!

Muitos beijinhos,
da tua pequenina

Kim disse...

É giro recordar esse tempo. Claro que com aquela barulheira toda ninguém mais dormia, após a chegada do leiteiro. Era um corrupio de "empresários em nome individual" a levar os bens de primeira necessidade ao consumidor.
Outros tempos ... dos quais bem me lembro.
Beijinhos Petite Marie

Maria disse...

Henriquamgo
São tempos de ontem que parecem tão longe!... Há dias, em que por um momento, parecem voltar num passe de mágica e nos levam de volta. Basta um cheiro, um ruído, uma foto, para que tudo volte com uma nitidez espantosa. Parece que estamos a ver um filme de um passado recente e que afinal já tem 50 anos. Os perús, as varinas, o homem dos caracóis, os fantoches de rua, as idas ao jaleco tão diferente, o circo no Coliseu, o Chiado polvilhado de mil tranças... Ó diabo! isto é do D. Vicente, a baixa de Lisboa. Eu lembro tudo isto. Até do meu pai a fazer cigarros de onça. Até das altas toialettes da mãe e tias. Dos gatos de Lisboa.
Tudo tão diferente! Lisboa limpa, Lisboa chic. Lisboa ainda mais bonita.
Passou, tudo passa. Nem os pasteis de Belém já são iguais.
Vou agora à Travessa.
Abraços machos, beijinhos à Raquel e queijinhos para tu
Maria

Maria disse...

Pequenina
Se eu contasse estas histórias aos meus netos, talvez não acreditassem. Para eles sou a avó e já nasci assim. Ainda não pensam que a avó já foi neta e foi da idade deles.
Gosto muito que gostes. Gosto muito de ti.
Beijinhos querida
Maria

Zé do Cão disse...

Recordações lindas que nos fazem viver.
obrigado Maria

jinhos

Maria disse...

Kim
Acho que todo o Lisboeta desse tempo, lembra esta ou outras coisas semelhantes.
Hoje, entramos num Super onde há tudo, o único barulho que ouvimos é uma música chata, e lidamos com as meninas da caixa, de que não sabemos o nome e são geralmente trombudas. Antigamente, os senhores padeiros, leiteiros, da mercearia tinham nome, sabiam o nosso, perguntavam-nos pela família. Hoje é tudo impessoal, frio, distante.
Beijinho, meu amigo
Maria

Maria disse...

Amigo Zé
Se não fossem as recordacções acho que já tinha morrido.
Não gosto do mundo agora.
Beijinho
Maria

Laura disse...

Que ternura minha querida Maria, que tempos saudosos, os meus avós moravam no campo e lá passava as deliciosas férias com o meu mano e pais, por vezes ficávamos lá e o pai ia buscar-nos, vivíamos aí na Pontinha da qual tenho lembranças pois aos 4 anos fomos morar para Vila Verde da raia na fronteira com Espanha.

Os sons não os lembro, apenas o cantar dos cucos, o chilrear dos passarinhos, o esvoaçar das andorinhas rente ao chão, e pouco mais... lembro sim o chiar das rodas dos carros de bois e de viajar (viajar sim) neles, agarrada aos estadulhos, de levarmos cestas com o mata bicho aos tios e amigos que cortavam o feno, era vinho, pão de milho feito lá em casa, pasteis de bacalhau, presunto azeitonas e mel, nozes, a avó mandava de tudo...lembro do vento a varrer o vale, do eco das palavras que soltava entre os penedos, ah, minhas lembranças são mais campestres, da cidade como morava lá..poucas tenho..

Bonita prosa dos teus tempos de menina.
Um abraço apertadinho da laura

Maria disse...

Querida Laurinha
As lembranças de um de nós, vão sempre acordar as lembranças dos outros. É uma das coisas que gosto no nosso grupo: Todos diferentes e todos tão parecidos na sensibilidade. O meu cantinho em Lisboa era nesse tempo, um sítio socegado, e pouco distante da Baixa. À tarde havia, às vezes, Fantoches, que nós viamos no camarote (janela). O que eu me ria com eles! Já não há fantoches. Os fantoches somos nós, movidos pelos cordelinhos presos nas mãos de meia-dúzia de senhores.
Beijinho nina
Maria

Andre Moa disse...

Querida Maria:
Que belíssimo retrato este que tu nos ofereces em prosa escorreita e rendilhada, da Lisboa antiga, da Lisboa que morreu para nunca mais. E que saudades! E que pena! Nem os cheiros, nem o castiço som dos pregões faltam nesta tua rica aguarela, pois que mesmo não estando lá, lá estão todos, bem nítidos, porque facilmente imaginados. Nem dos Robertos (dos Fantoches)te esqueceste. só te faltou falar do canário na gaiola, pendurada ao sol. Mas com tanto barulho, embora nenhum ensurdecedor como os de hoje, é natural que ninguém na tua travessa se atrevesse a aprisionar canários para acordar a vizinhança toda. Parabéns e muito obrigado. Encheste-me a alma. Como sempre, aliás.
Beijinhos
André Moa

Maria disse...

Querido André
Havia canários, sim. Na rua de cima morava um homem a quem chamávamos, o senhor dos passarinhos. Quando se levantava, a primeira coisa que fazia, era limpar a grande gaiola, dar-lhes alpista e alface, mudar a água e falar com eles. Eles trinavam felizes e nunca fugiam. E havia gatos, muitos gatos gordos, que faziam o favor de nos livrar da rataria. Era Lisboa inteira numa Travessa pequena, enfeitada por bandeiras de roupa a secar. E havia as lavadeiras de Caneças com as trouxas à cabeça. E a camioneta desconjuntada, que trazia a água, (aquela que dizia a canção, que as bilhas são de Caneças, mas são cheias em Lisboa).
E por vezes bulhas de faca e alguidar, mulheres que arrancavam os cabelos, rixas familiares. A tudo assistiamos da nossa janela camarote, até que a Avó punha a bolinha vermelha no canto da janela e nos mandava para o quintal.
Ai juventude que não voltas! Adeus Lisboa desses tempos.
Obrigada pelas tuas palavras amigas.
Beijinhos
Maria

Laura disse...

Tão lindo ler-te, encher meu espirito de coisas que são saudade nas gentes de mais idade como nós. Os nossos filhos e netos a pouco disso assistiram, e mal sabem eles o que perderam...
A vida mudou, o ter dinheiro deu em ter demais e ser livre mais cedo..e, acabou mal na maior parte das vezes com as drogas as bebidas que foram frequentando os cafés..e...lá estamos nós a divagar... que tudo poderia ser diferente mas a história do povo escreve-se assim...da forma que é, que foi e há-de ser.
Beijinho de bom dia querida maria, da tua flor de linho.

Maria disse...

Laurinha
Há uma velha cantiga que diz: "A Primavera vai e volta sempre. A mocidade vai e não volta mais". Mas volta. Volta na nossa memória, na lembrança nunca esquecida da juventude que guardamos dentro de nós. É assim que às vezes me revejo nova, alegre, brincalhona, namoradeira. E volto a ser feliz. Recupero os que perdi e me fazem tanta falta!
Agora tudo é diferente. Os jovens são diferentes, não sei se mais ou menos infelizes. Será que um dia terão saudades da mocidade?
Beijinho
Maria

Laura disse...

Maria querida, lá isso todos temos, mais novos ou velhos, a mocidade quando se vai deixa mágoas profundas e o tal do se, porque não, porque foi assim, porque fiz assado, ai Maria as dúvidas que me assolam por vezes foi por ter trilhado caminhos diferentes, e vai daí, se fosse assim, mas devia ter sido assado...Claro que todos têm aquela saudade do que poderia ter sido e nem foi.

beijinho da laura

Je Vois La Vie en Vert disse...

querida Maria,
Agrada-me imenso ler as histórias do teu passado, ainda mais porque nunca conheci este tipo de vida.
Já conheci a minha avó velhinha e não ia passar férias em casa dela. A minha mãe é a antepenúltima de 8 filhos e já fez 90 anos. Mas tenho outras e boas recordações da minha infância que foi feliz e que contribuiu para o meu optimismo e a minha estabilidade emocional.
Aos ruídos, habituamo-nos como às galinhas da ìndia e aos galos do meu vizinho da frente que começam a meter a conversa em dias nas primeiras horas de manhã. As minha visitas estranharam mas os já não os ouvimos bem como ja não oiço o meu filho quando volta duma saída às tantas da manhã e que tem o quarto ao lado do nosso.
O ser humano tem a capacidade de poder habituar-se a tudo até ao ...sofrimento, se quiser...
Beijinhos
Verdinha

Maria disse...

Querida Verdinha
Desde pequena que tenho um sono muito leve. Basta um estalo da madeira para acordar. Se houver barulho, já nem tento dormir.
Por isso, tenho tão presentes todos os ruídos antigos e os de agora. Basta que um vizinho tussa, para eu acordar. Depois, tenho uns ouvidos apuradissimos que captam os sons que mais ninguém ouve. É um previlégio e um mal, pois não consigo dormir. Foi sempre assim, já me habituei.
Beijinhos
Maria