sábado, 3 de julho de 2010

Tia, minha Tia


É Julho e Julho para mim é Lisboa. Não sei sair de cá. É Arroios e a casa da Avó, o Chiado, o Jaleco, os cinemas, as festas de anos da Tia, da Prima, da Avó. É caso para dar parabéns à prima, única das três ainda viva, que faz anos hoje, no mesmo dia em que a Tia fazia. Tive muitas Tias. Do lado da Mãe eram 4, todas solteiras, mais a mulher de um Tio. Do lado do Pai 2, uma ainda viva e a mulher do Tio. Depois quando casei, adquiri mais algumas que me foram queridas. Claro que com tantas tinha algumas preferidas.
Pendia mais para as do lado do Pai. A que ainda é viva é minha madrinha e vivo no pavor constante de a perder. A outra, esta que fazia anos hoje, era a Tia Maria da Graça, mais conhecida por Tia Bia, ou apenas Tia. Nunca casou. Já depois dos irmãos casados teve um namoro sério, daqueles que costumavam acabar em casamento. Tudo corria bem, até que alguém com uma língua suja, foi com histórias estúpidas, para o pretenso noivo. Ele, conhecendo-a como conhecia, em vez de se calar, foi-lhe fazer perguntas. Ela não gostou que pusessem em causa a sua virtude e acabou o namoro. Ele pediu perdão, esperou um tempo, mas o perdão não veio e casou com outra. Ela ficou solteira. Nunca mais quis saber de homens, ficou com a Mãe, uma sobrinha que criou de bebé e a casa cheia de outros sobrinhos que lá se juntavam. Era uma pessoa boa, pura, adorava a Mãe, os irmãos, os sobrinhos. Como ser humano, claro que tinha defeitos. O principal era um feitio irritadiço, comum a toda a família, com fúrias que mais pareciam o fim do mundo. Passada a tempestade, voltava a ser a Tia, paciente, tolerante, brincalhona, de sempre. Por vezes eram problemas de dinheiro, por vezes um grão de areia, talvez às vezes, um pouco de revolta com a vida. Ficou sem Pai com 6 anos. Toda uma família sem o único que a sustentava. Os irmão rapazes foram saindo de casa nas Caldas e ficou com a Mãe e a irmã. Vieram para Lisboa e foi a corrida de casa da Avó para partes de casa, até chegar à casinha da Travessa. Bordava para fora, cuidava da casa e da Mãe, até ir trabalhar para o I.P.O. na Secretaria. Trabalhou lá até à reforma. Quando vinha do trabalho a pé, comprava para nós gatinhos, ou sombrinhas de chocolate. Eu fingia que gostava. Adorava os gatinhos embrulhados em prata, mas detestava chocolate, além de ter pena de comer os gatinhos. Guardava-os nos bolsos até eles derreterem. Deitava-se no divã e começava a cegarrega: “Tia, dê estalinhos com os dedos dos pés!... Era uma habilidade única e não havia televisão, nem consolas, nem jogos electrónicos. Tirando a velha telefonia que dava aos soluços a triste história da “Coxinha do Tide”, os “Parodiantes de Lisboa” e os “Serões para trabalhadores”, não havia maior divertimento que ouvir os estalinhos dos dedos dos pés da Tia.
Nos anos dela havia festa. Lanche melhorado, visitas, flores e chocolates. Nesse dia vestia sempre de branco. Ficava bonita a Tia.
Ó Tia que saudades da tua açorda com ovinho! Nunca mais comi nenhuma parecida.
Eu casei, vim para Lisboa, ia vê-la a ela e a Avó. A Avó morreu e ela ficou com a sobrinha, a minha Margarida e a filhota dela, grande amiga da minha. A tragédia não se cansava de a procurar. A nossa Margarida morreu nova. Ficou só com a filha dela. Ouvia muito mal. Ao telefone então era um suplicio. Comigo falava horas. A minha voz treinada a falar com o meu Pai, ela ouvia melhor. Contava histórias antigas, falava dos seus queridos mortos.
Num dia nevoento de Fevereiro, dia da Santa com o meu nome, eu estava triste. Fui buscar um filme que tinha visto com ela muitos anos antes: “A Colina da Saudade”. Tínhamos adorado o filme e ela, romântica inveterada, fartou-se de chorar. Eu também.
O telefone tocou, eu atendi e do outro lado uma voz disse-me: “A Tia morreu”. De repente, sem doenças aparentes, sem sofrer parece, como sempre tinha querido.
Foi a última vez que nos reunimos na casinha da Avó. Uma prima minha abraçou-me e disse a frase que a descreveu: “Coitadinha! Era um bocado chatinha, mas era muito nossa amiga”.
Hoje lembro-te Tia. A dar estalinhos com os dedos, a ler os românticos livros de Pearl Buck, a ralhar, a lambuzar-nos de grossas fatias de pão com manteiga e açúcar amarelo, a falar do teu único, grande e perdido amor.
Beijinho Tia. Daqueles repenicadinhos que tu davas.
Até um dia destes. Se calhar vou mesmo ver a “Colina da Saudade”.

21 comentários:

Osvaldo disse...

Maria;

Embora também com algumas tias, nunca dei sorte com elas... eram chatas pra diabo.
Lembro de uma que um dia ficou doente com problemas que a impediam de se mover. Então, eu com os meus seis anos, fui à lareira e com o carvão pintei-lhe a cara toda!!!...
Foi a minha vingança.
Ficou mais preta que que telefone dos antigos...

bjs, Maria e abraços aos homens da casa.
da Anita e Osvaldo

xistosa, josé torres disse...

Tias tive muitas, só por parte da mãe, eram 6.
Chatas?
Chatérrimas!!! Quando se almoçava ou jantava lá em casa era um suplício de comida a cair no prato, mesmo depois de termos chegado com o dedo ao manjar, ou nem tanto.
Ainda tenho uma aí por Lisboa (Ameixoeira)
Mas açorda ... ainda comi (cozinhada por mim, pois claro!) hoje ao jantar.
Não leva ovo escalfado porque há comensais que não apreciam.
Por isso acompanha com pataniscas do dito cujo peixe, mas feitas a preceito por quem sabe ( a "m/secretária" de há mais de 37 anos).
Quem gosta de coentros ... "borrifa a açorda", porque aqui o "restaurante" tem que agradar a todos.
O café está à espera.
Bom fim de semana.

Unknown disse...

Mariamiga

As tias que tive - hoje, só restam duas - eram bué da fixes. Excepto uma das sobreviventes que era e continua a ser uma ganda chata.

Mas a tia Virgínia, agora com os seus noventas, irmã do Sr. Ferreira, da Casa Ferreira, tudo para pintura, no Bairro Alto com sucursal na baixa, é uma Senhora extraordinária.

Uma mãos de fada. Flores minúsculas de miolo de pão soberbamente pintadas eram o seu melhor cartão de visita.

Aqui há três anos, ainda subia num escadote para tratar dos tectos da casa. Hoje, nem pensar.

Um destes dias, quero ver se vou vê-la, antes que feche a loja... das tintas.

Abs ós mxs e qjs para tu

Vasco disse...

Ainda aqui há dias procurava no meio de papéis velhos (também já os tenho) cartas de amigos que já não vejo há alguns anos.
No meio encontrei duas ou três cartas da Tia Bia. Uma em que me agradece a minha carta a falar-lhe sobre o nascimento da sobrinha-bisneta.
"Querido Vasquinho:
Gostei muito da tua cartinha em que dás conhecimento à Tia Bia de tudo (...)"

A carta continua, mas por ser carta, não a publico.
Depois posso la mostrar.

Não esqueço nem perdoo a algumas pessoas que a evitavam a todo o custo, por ser difícil falar com ela. Também tinha dificuldade que me ouvisse, devido à sua surdez. Mas se necessário, havia sempre papel e caneta para comunicar.
Ela merecia ter sido mais estimada!

Não me esqueço do dia 5 de Fevereiro de 1999. Tinha nos meus planos ir vê-la lá a casa, mas acabei por vê-la na igreja! Mas que granda partida que nos pregou!

Beijinhos para a Tia Bia.
Beijinhos para ti.
E aproveito para saudar o Osvaldo e o Antunes Ferreira.

Laura disse...

Ah, gente torta é o que é. Há sempre forma de falarem connosco e nem sempre todos conseguem ler nos lábios, nem com um funil lá chegavam...mas, quem a tratou mal, receberá a pobre recompensa! e os meus pais e amigos quando eud eixeid e ouvir, aos seis anos, escreviam-me numa folha ou numa lousa e eu assim percebia tudo...foi bom ter os pais que ajudavam e até o meu falecido maninho, o meu Dérito com dois anos e pico, se eu não entendia aquele linguajar de puto pequeno, molhava o lápis que ia buscar, na lingua e escrevia nas paredes cor de café com leite, uma fila seguidinha de mmmmmmmmmmmmmmm aquilo tinha prá'í um kilómetro de comprido e no fim,feliz, virava-se para mim a esperar aprovação e dizia; percebeste? e eu dizia que sim, só que ele fazia como a mãe...o que é que eu disse?... este maninho querido fois empre o meu amor d eirmão, davamo-nos bem e foi ele que na África do Sul me ensinou Inglês, tinhamos as nossas camas lado a aldo e horas antes de dormir, ensinava-me o a(ei) b (bi) c (ci) etc etc o 1 one 2 two 3 tree 4 four e por aí fora...foi ele o amor mais puro da vida que veio para me amar e ser amado por mim... já homem, já casado e com filhos, continuava afalar de mim aos amigos como se fosse única no mundo, chorava sempre que eu falava com ele ao telefone, minha nossa, que amor lindo o nosso...

e beijinhos à tia Bia, porque não teriamos feitios de revolta se sofriamos assim...
Abraço-te maria..laura
Corvo, beijinhos a ti meu querido amigo.

Maria disse...

Osvaldo
Tenho boas e más recordacções de todas as tias. Esta, a minha madrinha, ainda viva, a mulher do tio e uma irmã da Mãe, eram as mais queridas. A Tia deixou um vasio muito grande. Era um ombro amigo para chorar, uma companheirona para as diverções. Brincalhona e alegre, tirando os dias em que acordava mal disposta. Aí, caía o Carmo e a Trindade.
Já se foi. Agora resta-me a minha madrinha e tia, com noventa e tal, que até há 4 anos gozava de boa saúde física e mental. Um raio de um A.V.C. deixou-a sem falar e sem mexer um dos lados. Está lúcida a maior parte do tempo e acho, que tem a noção perfeita do estado em que está. Dói muito vê-la assim. Tenho que a ir ver, mas tenho medo do que vou encontrar. Era e é muito bonita. Chora quando nos vê, tenta falar, agarra-nos com se não quisesse mais largar-nos.
Tenho que deitar o egoísmo para tràs das costas e visitá-la, nem que seja a última vez.
Abraços dos homens e beijos para a Anita e para ti.
Maria

Maria disse...

Xistosa
As tias todas gostam de nos encher o papo. As minhas viam-se gragas para me fazer comer, coitadas. Esta lá me vencia com a açorda, o pão com manteiga e açúcar e outros mimos.
Ainda hoje gosto de açorda. Com coentros, claro. Açorda de tudo e sem nada. Acho que é a maior invenção da culinária. Comida de pobres que os ricos gostam.
Vou tomar o pequeno almoço e já volto.
Bom fim de semana
Maria

Maria disse...

Henriquamigo
Com essa das flores de pão, tramaste-me. Foste mexer no fundo da cabeça cheia de lembranças. No meio delas, quase esquecidas, estão as flores e bonecos de miolo de pão que uma prima fazia. Ficavam lindas. E depois de pintadas e com uma camada de verniz incolor, duravam muito.
As tias são seres especiais. Às vezes chatas, às vezes uns amores.
Esta que me resta é das segundas. Tenho que a ir ver rápidamente, para não ficar toda a vida a pensar que nunca cheguei a dizer-lhe que a adoro.
Abraços dos homens, beijinhos à Raquel, queijinhos para tu.
Maria

Maria disse...

Corvo, meu Corvo, como te pareces comigo e com o Avô! Não sei se é bom para ti, mas gosto que sejas assim.
Está um dia lindo para ires à praia. Vai e diverte-te, mas tem cuidado com o Sol e o Mar. E com as garinas, que são terríveis. Ainda me roubam o meu confidente.
Bejinhos
Mãe

Maria disse...

Laurinha querida
Na minha família há muitos a ouvir mal, e um irmão da minha avó era competamente surdo. Ficou assim aos 12 anos. Falava, mas não ouvia.
Foi feliz sabes? A senhora com quem casou era doce e amava-o. Falava-lhe de frente e às escuras chegava os lábios aos dele e fazia-o perceber tudo. Nós sempre o amámos e respeitámos. Era muito alegre e brincalhão, meiguinho e conseguia perceber bem os gestos. O meu pai chegou a aprender todo o alfabeto dos surdos para falar com ele. Foi sempre amado e respeitado por todos. Trabalhou muito para se sustentar a ele, à mulher e duas sobrinhas. Acho que nunca se sentiu infeliz. Havia sempre alguém por perto que falava com ele e se fazia entender.
Já morreu há muitos anos, mas tenho saudades dele.
As pessoas são estúpidas de todo.
Sempre me entendi bem com os que ouvem mal. O Vasco também. Vê o que ele escreveu no comentário.
Passava horas a falar com o Avô e a Tia.
Beijinhos querida. Tu cada vez vais ouvir mais e melhor.
Maria

Laura disse...

Maria, o teu Vasco é um doce de rapaz, tem sensibilidade e os homens parece que têm vergonha de a sentir, acham piegas, são..deixa, digo só (tótós)os meus ninos ensinei-os de pequeninos a lidar com todo o tipo de deficiências, especialmente deficientes em cadeiras de rodas... comigo lidaram da melhor forma possível e dava gosto vê-los a abrir caminhos para mim...
Tadinha da tia Bia mas ela já perdoou a todos os que a magoaram, a burrice leva as pessoas a fazer o que não devem, mas...quando passarem pela mesma vão lembrar-se do que fizeram...
Beijinhos a ti e ao querido Vasco..Laura

Maria disse...

Laurinha
A Tia de certeza perdoou tudo. Perdoava sempre. Mesmo coisas graves.
O meu Vasco é assim. Havias de ver a paciência que tinha com o Avô. Enquanto ele pode andar, levava-o à baixa e iam beber uma ginginha. Passava horas com ele, comunicando, ouvindo histórias e confidências. No dia da morte do Avô, vi-lhe lágrimas nos olhos (ele nunca chora), abracei-o e disse-lhe: "chora filho. Não te envergonhes". A resposta foi um caudal de lágrimas e uma frase que nunca esquecerei: "ó mãe, eu sei que os outros netos também perderam o Avô, mas eu perdi o Avô e o meu maior amigo".
Foi para ele e para mim o último beijo e o último do meu querido Pai.
Ele manda um beijinho para ti.
Um bem grande da tua
Maria

Maria disse...

Nina
Faltou escrever "olhar" ao pé de beijo.
Maria

Je Vois La Vie en Vert disse...

ai, o malandro do Osvaldo !
Eu tenho boas recordações das minhas tias do lado da minha mãe : eram 4, 2 ainda estão vivas : uma que é a minha querida madrinha, Tante Jeanne, está num lar e é como uma planta morta, coitadinha, mas não sofre, tem 96 anos, a outra, Tante Thérèse, vou sempre vê-la quando vou à Bélgica, tem 92 anos e sofre muito porque o filho esteve bastante doente e está em diálise. Também gostei das mulheres dos meus tios. Sempre me portei bem (hé hé) e gostavam de mim. A minha avó materna ficou viúva com 8 filhos aos 40 anos e a família era muito juntinha. De lado do meu pai, tínhamos poucos contactos. Só tínhamos com a irmã mais nova do meu pai, mulher do meu padrinho mas infelizmente faleceu muito cedo de câncro, querida Tante Loulou.
A minha mãe é que foi uma óptima tia porque recebeu sempre os seus sobrinhos/as durante as férias e até durante meses quando os pais tiveram que ir para o estrangeiro e recebe sempre visitas deles ou telefonam-lhe.
Todos/as (12 + os cônjugues) tiveram filhos, salvo 3 e por isso, tenho 50 primos direitos !
Mas não tive nenhuma tia que estalava os dedos dos pés, que eu saiba...Elas também estavam bem ocupadas com os próprios filhos.
Gostei de te ver bem-disposta no Resteas e até deixei-te um recado...

Muitos beijinhos da
Verdinha

Kim disse...

Pois é Marie!
As tias faziam parte das nossas vidas e o coração pendia sempre para um dos lados.
Quanto aos amores, foi exactamente por motivos destes que muitas meninas ficaram para tias. Quase sempre por orgulho e pela defasa das suas virtudes.
Beijinho Petite Marie

Maria disse...

Verdinha
Que grande família! Era assim dantes e era bom. Havia uma ligação muito maior que hoje. Agora a família quase se resume a pais, filhos e netos. A vida mudou muito. Tenho primos que só já vejo nos funerais. É triste.
Beijinhos
Maria

Maria disse...

Kim
Era essa mesmo a razão de haver tantas tias. Preconceitos idiotas e hoje felizmente fora de moda.
Como ela criou a sobrinha de bebé, foram dizer ao homem que era dela.
Ele feito parvo, teve dúvidas, e ela do alto da sua inocência nunca lhe perdoou.
Felizmente as coisas estão diferentes. Talvez demasiado diferentes.
Beijinhos
Maria

Andre Moa disse...

A "Colina da Saudade"
cheia de flores mimosas
é dos filmes sem idade
e lembram tias saudosas.

Pela tua tia,
um beijo.
André Moa

Maria disse...

André

"A Colina da Saudade", "Casablanca", "O grande Amor da minha vida", as coboiadas, em que no fim ficava o rapaz bonzinho, a menina bonita e o cavalo... Filmes que lembram a nossa juventude. Tão diferentes dos de hoje! E havia Fellini e os grandes filmes realistas italianos. E os filmes Biblicos enormes!... Pareço o Paco Bandeira, mas não me importo.
E tudo o "tempo" levou.
Beijinhos
Maria

Laura disse...

As tias, queridas e amadas tias, algumas nem tanto, mas, lembrando-as, mas que saudade fica no coração, as minhas eram todas umas ricas tias, nunca me puseram a mão, mas a mais velha , professora, essa quando conseguia (eu fugia-lhe ahhhh) arreava umas chineladas, mas pouco..enfim...
beijinhos a todas as tias especialmente às tias que sabem amar os sobrinhos..
laura

Anónimo disse...

necessario verificar:)