Meu pai era funcionário judicial, como já disse.
Não era um trabalho que lhe agradasse muito, pelo menos algumas das funções que lhe estavam atribuídas. Estando no Tribunal do Trabalho, havia duas coisas que ele abominava: assistir a autópsias e fazer penhoras.
Estas últimas, faziam-no por vezes, ir a lugarejos longínquos, ermos, com caminhos que nem as cabras corriam.
Acompanhado por um oficial de diligencias e a pistola regulamentar, lá ia, com chuva, frio, ou calor de rachar. Chegava a casa maldisposto, indignado com o papel que era obrigado a fazer. Às vezes, via-se obrigado a penhorar coisas, que sabia que iriam fazer falta, a quem sem elas ficava.
Um dia, foi a um lugarejo, entre Tomar e Ferreira do Zêzere, perdido entre pinhais e, deu de cara com um homem desesperado, que lhe apontou uma caçadeira. Tentou dissuadi-lo, mas o homem queria de qualquer forma defender os seus parcos haveres. Contrariado, apontou-lhe a pistola e deu-lhe voz de prisão. Trouxe-o para Tomar e entregou-o na cadeia. Foi para casa, não jantou. Deitou-se e não conseguia dormir. Às tantas, levantou-se, vestiu-se e foi direito à cadeia, que ficava próxima da casa que habitávamos. Acordou o carcereiro, falou com o homem, libertou-o, emprestou-lhe a bicicleta que então possuía, dizendo-lhe que no dia seguinte teria que estar à porta do Tribunal, às 9 da manhã. O homem não falou, não prometeu nada, mas abalou para casa. Ele voltou para casa, calmo, dormiu o resto da noite. No outro dia, a minha mãe estava inquieta. “E agora se o homem não vem, o que é que fazes?” Ele, muito sossegado, respondeu: “Vem. Tenho a certeza que vem”. Tomou o pequeno almoço, fumou um cigarro, desceu as escadas e, a primeira pessoa que viu, foi o homem. Tudo se resolveu em bem. E o meu pai ganhou um amigo. Um amigo, que do pouco que tinha, repartia com ele. Quando vinha a Tomar, havia sempre um saquito de azeitonas, um queijo, às vezes uma garrafa de azeite ou vinho.
Igualaram-se um ao outro. Um porque confiou, o outro porque mereceu a confiança. Eram assim os homens deste país. Bastava um aperto de mão, para selar um pacto de confiança, um fio de barba, para garantir um juramento.
Onde estão esses homens? Em quem se pode confiar, ainda?
Até um dia destes.
sexta-feira, 23 de janeiro de 2009
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6 comentários:
Maria, o teu pai era um bom homem! Dá para pensar. Quantos homens fariam isso arriscando o próprio emprego?
Também tu és um coração aberto. Tens a quem sair.
Parabéns pelo teu pai Marie!
Kim:
O meu pai era um ser aparte.
Trocista, irritadiço, mas de uma bondade extrema. Tinha um ofício díficil.
Nunca me esquecerei, de um dia em que o vi com lágrimas nos olhos, por causa de uma autópsia.
Ele era funcionário do Tribunal do Trabalho. Um dia, uma companhia de seguros, exigiu uma segunda autopsia de um garoto, que tinha morrido num acidente de trabalho. Os pais, muito pobres, tinham feito um enorme sacríficio, para o filho levar para a cova, o fatito completo, que nunca tinha usado em vida. Quando ele viu o coveiro, rasgar de alto abaixo as costas do casaco, sentiu tal revolta, que quase bateu no homem. De seguida, obrigou-o a vestir o garoto, de forma a que se não visse o rasgão. Só depois, deixou que os pobres pais, que tinham pedido para ver o filho mais uma vez, se aproximassem.
Era um socialista da velha guarda, pertenceu à Acção Socialista. Sendo funcionário público, nunca escondeu as suas ideias. Para isto não ficar tão triste, vou-te contar uma história passada num café do Porto. Apresentaram-lhe um sujeito que se apresentou da seguinte forma, depois do aperto de mão: "Sou fulano, agente da Pide". Logo a resposta veio rápida e esclarecedora: "obrigado pelo aviso e desculpe, mas tenho que ir lavar as mãos".
E foi mesmo, saindo a seguir, sem se despedir.
Era assim, como só ele, o pai de quem me orgulho e amo, mesmo depois de ter ido embora há 7 anos.
Beijo
Maria
Amiga:
O teu PAI era um ser humano fantástico.
... E tu, minha querida, és linda como ele!
Abraço-te, com ternura :)
Carla:
Foi ele o meu grande exemplo de vida, o meu mestre. Só não herdei dele o optimismo e a enorme alegria de viver. Fui muito feliz enquanto o tive, consolo-me, pensando na sorte que tive por o ter tido.
Faz-me uma falta horrivel, mas penso na sorte que tive de o ter até aos 92 e lúcido, quase até ao fim.
Beijos para os 4
Maria
Maria, minha amiga,
O teu Pai era um ser especial. Era amigo, frontal, de convicções firmes, perto de quem nos sentíamos seguros.
Falava-nos olhando-nos de frente com franqueza e lealdade.
Defendia com muita nobreza aquilo em que acreditava; criticava com frontalidade e "sem papas na língua" aquilo de que não gostava ou não lhe agradava.
Sempre saí de perto dele mais rica e bem disposta com a vida.
Beijinho amigo
Nemy
Querida Nemy:
O teu comentário foi-me muito agradavel. Tu que o conheceste sabes que não exagerei naquilo que disse dele.
Infelizmente os últimos tempos, mudou, ou melhor mudaram-no. Tu sabes quem.
Só não entendo que alguem como ele, se tenha deixado manipular, por um ser tão abjecto e insignificante.
Beijos
Maria
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