segunda-feira, 11 de maio de 2009

Quando eu tinha tranças


Quando eu tinha tranças, Tomar resumia-se a um aglomerado de casas baixas, ruas estreitas calcetadas de belos seixos rolados, uma praça, onde D. Gualdim seu fundador imperava. De um lado a Câmara Municipal Manuelina, do outro a Igreja de São João Baptista, nos outros lados casas grandes. Na Praça desembocava a Corredoura que nesse tempo me parecia enorme e larga, a rua de São João, a rua Direita, que por acaso é um bocado torta. Dum lado chamava-se rua Regimento Infantaria 15 e ia dar à Várzea Grande, à estação, à estrada para Lisboa, do outro chamava-se Rua Silva Magalhães e ia ter ao Pelourinho, à Várzea Pequena, ao Mouchão, à Igreja de São Gregório, à estrada de Leiria. Subindo a Corredoura, atravessava-se a bela e única ponte e estava-se em Além da Ponte ao pé do antigo Convento, de onde se diz Santa Iria se atirou (ou foi atirada) às águas do Nabão. Tinha a Igreja dedicada à Santa, um colégio onde andei, meia dúzia de casas. Junto ao colégio passava a estrada que seguia para o Cemitério, a lindíssima Igreja de Santa Maria do Olival, com a sua peculiar torre sineira ou Atalaia e seguia-se para Marmelais, Mais longe era a Fábrica de Fiação, a estrada de Coimbra e outros destinos.
Em qualquer lado que estivéssemos, de qualquer ângulo que olhássemos, lá estava altaneiro e belo, rodeado de verdes variados, o Castelo de D. Gualdim. Era só subir a rua Pé da Costa de cima, chegar ao Terreiro, franquear a porta, andar um bocadinho e aparecia em toda a sua Majestosa união, o Convento de Cristo com a sua Charola, a Janela conhecida de todos, os claustros, os corredores intermináveis e o Castelo, as torres, as muralhas.
Um pouco ao lado, a igreja de Nossa Senhora da Conceição, pequenina basílica.
Noutro monte, a Senhora da Piedade, com a monumental escadaria, a graciosa capelinha.
De um dos lados do pequeno terreiro, viam-se as ruas, as casas, a igreja.
Depois Tomar cresceu. Espalhou-se para lá do rio, fizeram-se novos bairros.
Mas eu continuava a andar à vontade, era na cidade velha. Só lá me sentia bem. Todos me conheciam, eu conhecia todos. As pedras redondas do chão sentiam os meus pés e eu gostava de as sentir.
Um dia fui-me embora. Quando voltei, anos mais tarde, achei diferenças: jardins menos bem tratados, ruas sujas, um Nabão poluído, mas as pedrinhas das ruas eram as mesmas. Acho que me conheceram os pés e os pés conheceram-nas.
Um dia, veio um senhor que em nome do progresso, acabou com a velhinha ponte de madeira que no verão unia o Mouchão ao Parque das Merendas, fez uma ponte onde podem passar tanques, tipo forte e feia, arrancou árvores, pôs uns candeeiros e floreiras inconcebíveis e... crime hediondo, arrancou as pedras das ruas, substituindo-as por um pavimento lisinho, iluminado, cómodo (dizem, porque os meus pés não gostam), que transformou a calçada tomarense num chão igual a todos.
Calculo que haverá muita gente em desacordo comigo e não me importo. Vivemos num país livre ao menos de pensamento.
Mas que dizem se um dia destes acordarem e em vez da Roda do Mouchão estiver uma bela torre Eólica? Gostavam? Eu não.
Pois é. Eu já estou velha, avessa a mudanças. Tenho saudades da Tomar antiga, das pedras do chão, dos salgueiros e das minhas tranças.
Perdoem-me os novos. Os da minha idade ou mais velhos, talvez lá no fundo, sintam o mesmo que eu.
Até um dia destes.

24 comentários:

Unknown disse...

Olá Maria.

Eu assino por baixo.

Beijo frande.

Unknown disse...

Era grande, obviamente.

Maria disse...

Alfredo:
Calculava que me daria razão.
Façam lá as casas e ruas novas como lhes aprover, mas deixem a cidade velha como sempre foi.
Estão a descaracterizar a minha (nossa) Tomar e isso entritace-me.
Beijinho grande para si.

Osvaldo disse...

Olá Maria;

Claro que se perdeu aquele encanto, ou até, a alma de muitas terras...

Também como o Alfredo, assino e confirmo...

Só uma pergunta; Eram tranças pretas ?!...

bjs, Maria
Osvaldo

Maria disse...

Osvaldo:

Mais um de acordo.
Obrigada pelo apoio.
Quanto às tranças eram castanhas muito claras e longas.
O dia em que mas cortaram foi um desgosto para mim e para o meu pai.
Beijinho para a Anita e para si.

Kim disse...

Marie! As tranças fazem parte da donzela que vê o seu castelo ser invadido pela civilzação.
Também eu lamento a queda desse reino.
Deixa lá. Tomar será sempre aquilo que os teus olhos quiserem ver.
Beijinhos petite donzela!

Maria disse...

Kim:
O mal da minha terra é ser governada a maior parte das vezes por pessoas que a não amam. Alguns nem lá nasceram. Como podem sentir a magia de uma pequena ponte, dum salgueiro, do chiar da roda? Como podem amar o convento, o castelo, a sinagoga, as igrejas? Não nasceram a ouvir o sino da igreja a dar as badaladas. Não esmurraram os joelhos naquelas calçadas. Não andaram de barco no rio, ouvindo as rodas, os salgueiros.
Há muitas coisas que desconhecem.
Beijinho da
Petite Marie (que gostava de ainda ter tranças)

Rui Ferreira disse...

Excelente "grito" contra a massificação da história!!

Maria disse...

Rui Ferreira:
É mais que grito, é angústia. É ver desaparecer o que estaria certo não fosse a incúria de quem deixa chegar as coisas, a um tal estado de degradação, que já não há retorno.
Obrigada pelo seu comentário.

Luis disse...

Apesar de ser um pouco mais novo, a Maria sabe que também estou de acordo consigo.

Ainda ontem dei um pequeno passeio ao final do dia e o que foi obras, obras e mais obras.
Actualmente, Tomar está esburacada. Enfim...

Beijo

Maria disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maria disse...

Olá Luís:
É claro que qualquer pessoa nova ou velha, tem a mesma opinião.
Ninguém concorda com os desmandos que têm feito na nossa linda terra.
Beijinho e obrigada pelo apoio

Laura disse...

Maria, minha querida Maria, é verdade que o progresso leva tudo a torto e a direito,e, se por vezes acertam e até fica mais nito, é certo que se devem respeitar as bases do que já tem, porque uma terra é para cada cidadão, a sua casa, e nem todos gostam de mudar o sofá ou a cozinha, querem tudo como está, mas, entendo-te...Eu não tenho dessas raízes profundas, talvez tenha mais pela aldeia dos meus avós, porque como já disse, vivi a cavalo e de burro por Portugal fora e pelo mundo e assim...raramente volto aos lugares onde vivi, porque a distãncia é sempre muita... África, etc. mas, aqui, anseio ir ao Entroncamento, sozinha, de comboio, hei-de ir e percorrer as ruas até á minha escola, a minha casinha onde viviamos felizes, ao lado do Olival...
Haja calma, mas, quandos e fazem obras camarárias, nas ruas, o que for, todo o cidadão devia ser consultado...
beijinhos, e deixa lá...a revolta não te ajuda.
Também tive tranças pretas, azeviche, morenaça, perguntavam-me se era india, ehhhhhh, e aos 16 anos, ainda usava de vez em quando, em Luanda...Não tenho nenhuma foto, é pena. beijinhos e tem um dia bom..laura.

Maria disse...

Laurinha querida:
Se viveste no Entrocamento, estavas pertinho de Tomar e sabes do que falo.
Façam lá as ruas novas como quiserem que para mim é igual. Agora mexerem numa pedrinha que seja, fico revoltada. Elas estão lá há séculos e ninguém se queixou.
Só agora se lembraram dos saltos dos sapatos. Vão lá entender os políticos!
Só falta porem alcatrão por cima das ruas.
Um dia o D. Gualdim chateia-se, desce do pedestal e vai tudo raso.
Beijinho, minha flor de linho

pico minha ilha disse...

Beijinhos Maria.Por aqui sem tempo, ando a fazer vésperas para o Espírito-Santo

Maria disse...

Salomé:
Espero que as Festas corram bem.
Manda um cheirinho das Sopas ou de Alcatra.
Beijinho

Anónimo disse...

Mariazita

Como eras linda com teu ar namoradeiro
'Té te chamavam menina das tranças pretas,
Junto ao Nabão corrias o dia inteiro,
E o resto são invenções ou tretas.

E as raparigas d'alta roda que passavam
Ficavam tristes a pensar no teu cabelo,
Quando as olhavas, com vergonha, disfarçavam
E pouco a pouco todas deixaram crescê-lo.

Passaram dias e as meninas de Tomar
Usavam tranças enfeitadas com violetas,
Todas gostavam de por ali se passear
E assim nasceu a moda das tranças pretas.

Da Alcatruzes ainda há boas lembranças,
Ficaram as saudades, bazaste, e às tardinhas
Está a cidade carregada de mil tranças
Mas tranças pretas ninguém tem como tu as tinhas.

O D. Vicente da Câmara, o malandro, roubou-me esta letra de fado e passou a utiliza-la como bandeira real. A Sociedade Portuguesa de Autores fechou os olhos e assobiou.

Eu, que até sou republicano, e a escrevi há uns largos tempos, repudiei, repudio e repudiarei vigorosamente tal procedimento obnóxio. Por isso, aproveito o ensejo para repor a verdade dos factos.

Foi, realmente, na cidade dos Templários e da janela manuelina que as cenas se passaram. O Chiado foi e é uma invencionice inqualificável. Posso dizer que foi mesmo uma inventona.

Desvendada a cabala da c'roa, aqui deixo a versão original, com o meu preito de homenagem à Mariazita. Tenho dito & escrito

Respeitosos qjs

Unknown disse...

Ah! "ganda" Henrique!

Espera aí um pouco que eu vou buscar a guitarra.

Apaguem as luzes e façam silêncio que se vai cantar o fado.

Laura disse...

Maria, realmente, os tacões estragam-se todos nesses cadinhos de pedra, e as meninas pagam um balurdio por eles, ora vá lá...deixa-te de ser cota, num sabes que os dior, os christian lacroix, os Fátima lopes, custam os olhos da cara? e quem paga tanto assim? quem botou fora as socas e se lembraram dos sapatos de tacão? agora olha...o Dom Gualdim pais, se aparecesse, arrasava tudo e todos e não só Tomar, proque, são milhares de corruptos em meio de umas centenas de honestos...
Ó balha-me...mas, os saltos altos falam mais alto...
O meu pai ia muitas vezes a Tomar e levava-nos de Comboio para estudar a História, por isso eu era a melhor nessa disciplina, hoje? nikeles...foi raivinha contra a minha stora...Beijinhos.

Maria disse...

Henrique:
Já me fartei de rir.
As tranças eram castanhas e em Tomar havia muitas. Namoradeira, eu? Tinha onze anos, a idade dos amores platónicos pelo vizinho do lado.
O que eu nunca pensei, foi que D. Vicente fosse capaz de semelhante acto. Vê lá tu, com aquele ar de bom rapaz e tudo e faz uma acção tan vili, tan sin "borgonha"! Keu inté tinha uma certa aquela por eli, mesmo sendo eu Republicana e ele sendo o ké. Olha, o Corvo tamen é, mas nã me precures porquei, quê nã sei e acho que ele tamem não.
Quêjinhos de Tomar em azête, kos frescos agora nã sã tan bons.

Maria disse...

Alfredo:
Com guitarra ou sem ela, gosto dos meus amigos juntos no meu cantinho.
Beijo

Maria disse...

Laurinha:
O teu pai ensinou-te história no mesmo sítio onde eu a aprendi com o meu.
O Convento é, na realidade, um grande tratado de História de Portugal e os nossos pais sabiam disso. Benditos os pais que ensinam os filhos, como os nossos fizeram.
Beijinho flor de linho.

Laura disse...

Maria, o meu querido Pai, era apenas funcionário Público e a trsiteza maior era eu não poder ouvir, imaginas um bom homem a cantar para a filha, para ler nos lábios dele as canções? Foi assim que fui aprendendo, escrevia-as e eu ficava deliciada, ensinava o mais que podia, dava-me uma atenção especial, era a laurinha dele, coisa que a mãe elisa nunca aceitou muito bem, era ciume que ainda hoje mantém, quando falamos dele, enfim...fez a mesma com a Neide e o Nuno, sempre a ensinar, foi mais pai que avô...
E, como eu e o meu irmão mais velho, tinhamos apenas um ano de diferença, iamos até Lisboa, lembro tão bem, eu só tinha medo, medo mesmo, dos tumulos dos reis, rainhas, de pedra, ah, que impressão me fazia antigamente, e memso entrar em Igrejas muito antigas, que têm subterrâneos, me deixa mal disposta e a sentir uma enorme vontade de sair dali...Mas fomos à batalha, a Tomar ao convento de Cristo, a Igrejas, capelas, em Lisboa já nem lembro de tudo e andamos por santarém, aqui e ali, e que belos momentos aqueles, guardados na memória que nãos e apaga..
Um beijinho a ti, da flor de linho. Laura.

Maria disse...

Querida Laurinha:

O meu pai também era funcionário público. Isso não quer dizer obrigatóriamente, que sejam burros ou pouco instruídos.
Aprendi mais com o meu pai, do que durante todos os anos que andei a estudar. Se já leste alguns comentários da minha amiga Nemy, deves ter visto o que ela diz dele.
Era culto, de uma cultura adquirida à sua custa, pois a morte do pai muito cedo, não lhe deu tempo de estudar em escolas. Foi jornalista algum tempo e depois foi para a função pública. Subiu a pulso, à custa de muito trabalho e sacríficios. Para subir de posto, teve que deixar Tomar, onde tinha muitos amigos e ir para o Porto. Embora aí tivesse arranjado outros, eram os das Caldas, onde viveu em pequeno e os de Tomar, aqueles que ele tinha por amigos verdadeiros. Foi uma vida dura, mas não o afastou dos livros, nem da necessidade enorme que tinha de saber. Foi isso que ele deixou aos três filhos e aos netos, que o adoravam. Todos os que o rodeavam, aprendiam com ele.
Eu bebia-lhe as palavras, as histórias de família e outras.
Amo-o hoje, como o amei em vida. É a minha maior saudade, no meio de tantas que a vida me deixou.
Como vês, há várias coisas em comum entre nós duas e é isso, que nos faz ser AMIGAS.
Beijinho minha flor de linho.