
Um dia destes em conversa com o meu irmão, uma das muitas em que há poucas palavras e muitas lembranças, lembrámos o frio de Tomar no Inverno e a braseira.
Dito assim, é difícil de entender. Eu conto. Já passaram sessenta e tal anos e tudo mudou na vida das pessoas, incluindo a nossa.`
Éramos cinco. Os nossos pais, o meu irmão, eu e a nossa irmã pequenina. A luz ainda era de 110 voltes, fraquinha e era do Senhor Mendes Godinho. Quando deixávamos mais do que uma lâmpada acesa, lá vinha a frase do pai: “Mas vocês julgam que eu sou sócio do Mendes Godinho, ou quê?”. O fogão era a lenha, estava aceso o dia todo. A braseira cheia de brasas, posta sob a mesa, dava-nos mais um pouco de calor. Quando entrávamos em casa, a ternura e as mãos macias da mãe, tiravam-nos a roupa e os sapatos molhados e frios, vestiam-nos roupa já quente e seca e sentávamo-nos à roda da mesa, com mantas nas pernas. O meu irmão a fazer os trabalhos da escola, nós a brincar, a mãe a coser roupa cantarolando baixinho e olhando de vez em quando as panelas onde o jantar já fazia. O pai chegava, chapéu na cabeça, tombado para a nuca, samarra de gola de pele de raposa e os safões de pele de vaca. Desenvencilhava-se de tudo aquilo, acendia o cigarro, abria o jornal, comentava as notícias. Depois do jantar continuávamos os cinco à roda da mesa. Longas conversas de tempos idos, ele de Óbidos e das Caldas, ela de Águeda onde vivera grande parte da sua mocidade. Ligava-se a telefonia que mais ou menos nitidamente, trazia notícias, música, os folhetins da Emissora, sempre boas obras literárias e interpretados por bons actores. À quarta-feira era dia de “Teatro das Comédias”, dirigido por Álvaro Benamor. Peças portuguesas e estrangeiras, bem representadas. A mais pequenina às vezes adormecia ao colo da mãe. A água da caldeira cantava baixo, aquecendo a água das botijas de metal ou grês. O sono começava a chegar. Botijas cheias, metidas na cama, uma corrida pelo corredor, um arrepio ao trocar a roupa e o quentinho da cama a fazer adormecer três cabecinhas ensonadas. Um último beijo dos pais, as mãos da mãe a aconchegar a roupa numa carícia e um “Até amanhã se Deus quiser”, já meio bocejado.
Éramos cinco então. Dois já partiram. Nós três que ficámos, cada um para seu lado, com novas famílias, novas lembranças.
Mas eu sei, meus irmãos, que há momentos em que tudo isto vos vem à ideia como a mim. E que lembramos a nossa primeira casa, a braseira e sobretudo os nossos pais.
Hoje foi a mim que a saudade atacou. Amanhã será um de vós a lembrar, os cinco, o frio e a braseira.
Até um dia destes e façam o favor de ser felizes.
Dito assim, é difícil de entender. Eu conto. Já passaram sessenta e tal anos e tudo mudou na vida das pessoas, incluindo a nossa.`
Éramos cinco. Os nossos pais, o meu irmão, eu e a nossa irmã pequenina. A luz ainda era de 110 voltes, fraquinha e era do Senhor Mendes Godinho. Quando deixávamos mais do que uma lâmpada acesa, lá vinha a frase do pai: “Mas vocês julgam que eu sou sócio do Mendes Godinho, ou quê?”. O fogão era a lenha, estava aceso o dia todo. A braseira cheia de brasas, posta sob a mesa, dava-nos mais um pouco de calor. Quando entrávamos em casa, a ternura e as mãos macias da mãe, tiravam-nos a roupa e os sapatos molhados e frios, vestiam-nos roupa já quente e seca e sentávamo-nos à roda da mesa, com mantas nas pernas. O meu irmão a fazer os trabalhos da escola, nós a brincar, a mãe a coser roupa cantarolando baixinho e olhando de vez em quando as panelas onde o jantar já fazia. O pai chegava, chapéu na cabeça, tombado para a nuca, samarra de gola de pele de raposa e os safões de pele de vaca. Desenvencilhava-se de tudo aquilo, acendia o cigarro, abria o jornal, comentava as notícias. Depois do jantar continuávamos os cinco à roda da mesa. Longas conversas de tempos idos, ele de Óbidos e das Caldas, ela de Águeda onde vivera grande parte da sua mocidade. Ligava-se a telefonia que mais ou menos nitidamente, trazia notícias, música, os folhetins da Emissora, sempre boas obras literárias e interpretados por bons actores. À quarta-feira era dia de “Teatro das Comédias”, dirigido por Álvaro Benamor. Peças portuguesas e estrangeiras, bem representadas. A mais pequenina às vezes adormecia ao colo da mãe. A água da caldeira cantava baixo, aquecendo a água das botijas de metal ou grês. O sono começava a chegar. Botijas cheias, metidas na cama, uma corrida pelo corredor, um arrepio ao trocar a roupa e o quentinho da cama a fazer adormecer três cabecinhas ensonadas. Um último beijo dos pais, as mãos da mãe a aconchegar a roupa numa carícia e um “Até amanhã se Deus quiser”, já meio bocejado.
Éramos cinco então. Dois já partiram. Nós três que ficámos, cada um para seu lado, com novas famílias, novas lembranças.
Mas eu sei, meus irmãos, que há momentos em que tudo isto vos vem à ideia como a mim. E que lembramos a nossa primeira casa, a braseira e sobretudo os nossos pais.
Hoje foi a mim que a saudade atacou. Amanhã será um de vós a lembrar, os cinco, o frio e a braseira.
Até um dia destes e façam o favor de ser felizes.